Só Ele transforma margens em começos

Por Elson Medeiros

Na semana de 21 a 25 de julho, participei, na Fajã do Santo Cristo (ilha de São Jorge), numa iniciativa do Serviço à Juventude da nossa diocese — a Aldeia da Esperança — que reuniu dezenas de jovens das várias ilhas do arquipélago num ambiente de comunhão, oração, partilha e contacto com a natureza.

Uma aldeia, mais do que um espaço físico ou territorial — mais ou menos pequeno, composto por uma dúzia de aglomerados habitacionais rústicos — é, sobretudo, um espaço humano e simbólico, onde se entretecem laços de pertença, amizade e memórias coletivas. É o lugar onde o convívio comunitário, a envolvência dos espaços, a natureza, a fé e as narrativas partilhadas moldam a identidade dos seus habitantes. A aldeia é, assim, uma expressão viva de um modo de ser e de estar no mundo, muitas vezes resistente à lógica impessoal da modernidade.

O termo “aldeia” tem, por isso, um forte sentido antropológico, na medida em que remete para uma totalidade concreta, onde o espaço, o tempo, a linguagem, os afetos e a fé se entrelaçam na construção de uma identidade coletiva — neste caso, a esperança.

A esperança, por sua vez, juntamente com a fé e a caridade, constitui uma das virtudes teologais: aquela que sustém a vida cristã e orienta o coração humano para um futuro agraciado por Deus.

Num mundo pós-moderno, dilacerado por ideologias, desilusões e uma profunda sensação de vazio, há — ainda — um sinal de esperança. Cada vez mais, renasce uma nostalgia de sentido. As pessoas — sobretudo os mais jovens — sentem no íntimo uma sede de verdade, de comunhão e de transcendência que nenhuma promessa imediata ou mercantilizada consegue saciar. Contudo, é precisamente nesse terreno fértil que surgem inúmeras “ofertas” de salvação — muitas delas sedutoras, rápidas, anestesiantes, mas ilusórias.

Vivemos cercados por discursos que prometem plenitude sem cruz, espiritualidade sem compromisso, felicidade sem verdade. São soluções fáceis para perguntas difíceis. Desde o individualismo terapêutico ao espiritualismo difuso, passando por ideologias de identidade ou por movimentos que misturam crença e consumo — promovendo uma espiritualidade feita de frases inspiradoras e experiências fugazes — tudo parece oferecer uma alternativa à inquietação do coração humano. Mas a maior parte dessas propostas acaba por ampliar o vazio que pretendem preencher, pois falta-lhes a consistência do real e a profundidade do eterno.

A esperança cristã, ao contrário, não ilude, não manipula, nem se impõe. Ela aponta para um caminho exigente, mas libertador. Um caminho onde o sentido não é um objeto a conquistar, mas uma presença a acolher: o próprio Deus feito próximo, feito Rosto, feito Pão. E é muitas vezes na simplicidade da natureza que essa presença se torna mais evidente e tangível. Ali, longe dos automatismos do mundo urbano e das distrações digitais, a Criação — a terra húmida, a água serena, o céu estrelado, o som do mar, das aves — tornou-se lugar de revelação. Não como um templo alternativo, mas como espaço criado por Deus onde o coração humano pôde escutar com mais clareza a voz do Criador. O mar que se estende sem fim, o silêncio da fajã ao amanhecer, o fulgor que desce sobre a caldeira, a pinta de ouro ao entardecer, o vento que passeia como brisa suave, o som dos cagarros a voltar aos ninhos… Tudo falou de Deus. Tudo evocou uma presença discreta, mas real.

É impossível esquecer aquela noite. Cada um de nós estava na margem — como Pedro, Tiago e João naquele dia junto ao lago. Na quietude do anoitecer, iluminávamos a escuridão com a luz tímida das nossas velas, como quem acende a esperança com mãos trémulas, mas desejosas de Deus. E ali, diante de nós, na barca repousando à beira da margem, Jesus estava. Silencioso, sereno, com o olhar fixo em cada um. E, como no princípio, a Sua voz fez-se escutar: “Vem, segue-Me.”

Naquela barca ancorada, Jesus Eucaristia fez-se centro e abrigo. Os nossos olhos fixaram o Pão, mas o coração viu muito mais: viu o Rosto que nunca se cansa de esperar por nós. E, nesse instante, cada um sentiu que estava em casa — não num lugar, mas num Amor que nos sustém.

A criação inteira tornou-se liturgia: o mar, as estrelas e os montes também celebraram o mistério. E nós, frágeis e pequenos, ousámos confiar outra vez no apelo do Senhor que, como no princípio, nos convidou a largar as redes e a caminhar atrás d’Ele.
Porque só Ele transforma margens em começos.

Elson Medeiros, peregrino da esperança

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