Há dias em que o sol finda o seu curso diário e decide pintar de dourado o céu, emanando a beleza das suas tonalidades sobre o rio Douro. Quem dera poder tocar o céu, absorver a sua energia radiante depois de longos dias de silêncios pesados e rotinas cinzentas. Nessas horas, o coração quase se convence de que o tempo abranda e de que há ainda algo de eterno nas coisas simples — o reflexo da luz na água, o frenesim dos motores, o abraço invisível da tarde que se despede. É como se a vista sobre a Arrábida nos devolvesse, por breves instantes, a promessa de um sentido.
Mas os pores do sol não são eternos; quer dizer, são-no na medida em que condensam em si toda a possibilidade do eterno. Mas a luz é fugaz e, como tudo o que brilha, traz consigo a promessa da ausência. Brilha porque passa. Ilumina porque se despede. E é nesse intervalo entre o que já foi e o que ainda não chegou que o coração aprende a escutar — não com os ouvidos, mas com a memória. A beleza do pôr do sol não está apenas na cor com que tinge o céu, mas na forma como nos devolve ao mistério do tempo.
Porém, eu raramente contemplo o pôr do sol. Para o poder ver em condições, tenho que subir para os primeiros andares deste edifício. É que estou circunscrito — preso, diria — ao meu piso, onde o horizonte é um muro gradeado e o céu uma promessa vaga, entrevisto apenas por entre os ramos das árvores ou o recorte dos telhados alheios.
A beleza, dizem, está por toda a parte. Mas há dias em que ela exige altura, exige deslocamento. E eu, enclausurado na minha rotina horizontal, aprendo a contentar-me com o reflexo dourado que pinta as paredes, com a luz oblíqua que invade os corredores, como que a lembrar-me que há um mundo para lá disto. O pôr do sol, nestes dias — e sempre— não é imagem: é intuição. Uma memória do que se vê com os olhos fechados.
O edifício é de fachada austera, traçado com rigor geométrico. É composto por placas de granito; mas não um granito nobre, quente ou vivo — trata-se, pelo contrário, de um granito pálido, desidratado, que, à distância, se disfarça de betão.
As janelas alinham-se em filas submissas, sem vontade própria, como olhos cansados habituados a olhar sempre para o mesmo horizonte. Não há varandas, nem flores, nem qualquer sinal de imprevisto — apenas uma repetição meticulosa, quase penitencial, como se o edifício inteiro estivesse em estado de recolhimento perpétuo. Aqui, a imaginação veda-se à entrada e a vida suspende-se, não por castigo, mas por norma. A própria pedra parece ter feito votos: de obediência cega, de repetição sem alma, de resignação. E quem habita este corpo de pedra — ou sobrevive nele — aprende cedo que a maior transgressão é pensar com voz própria. Porque aqui, pensar é um privilégio concedido — e raramente autorizado.
Nunca pensei dizer isto, mas sinto imensa falta da calçada polida da Rua do Palácio. Não era bonita — pelo menos, não de forma evidente. Tinha buracos, desníveis e a memória de muitos passos cansados. Mas era livre. Livre no seu caos, nas suas pedras gastas que contavam histórias de gente que ia e vinha sem pedir licença a ninguém. Ali, o mundo não era perfeito, mas era aberto.
Recordo, com saudades, as saídas após a janta; as idas ao Central ou à Quinta. Os serões que passámos juntos no “canto dos sofás”; onde o convívio não soava a algo forçado e rotineiro, mas algo genuíno — como se, por instantes, nos fosse permitido simplesmente estar, sem papéis a cumprir nem máscaras a ajustar.
Ali, as conversas corriam sem medo de serem escrutinadas, os risos não precisavam de justificação, e até o silêncio era confortável — não o silêncio tenso de quem se vigia, mas o silêncio cúmplice de quem se entende. Não havia horários a impor dispersões abruptas, nem autoridades a pairar com discursos prontos. Nem era preciso formalizar convívios — tainas, como aqui lhe chamam. Havia tempo. Havia espaço. Havia humanidade.
Que bem o diga o Dário, o Alfredo, o Bernardo, o Vieira, o Furtado, o Soares, o “alfacinha” ou até mesmo o Sénio; e muitos outros que lá passaram. Sinto falta do modo como Angra me devolvia a mim mesmo, sem me exigir nada.
Aqui, a sensibilidade é estranha. É diferente, é hipocondríaca. A ternura aqui sofre de claustrofobia, e a espontaneidade, quando ousa aparecer, é logo convidada a recolher-se para não incomodar. E qualquer emoção que ouse levantar a voz é logo medicada com silêncio, desinfetada com reservas, disfarçada com formalismo. Talvez por isso tanta gente adoeça sem febre: porque a alma também precisa de ar livre, de correrias sem sentido, de gargalhadas fora de hora.
A mim não me assustam filactérias e berloques. Nem rendas, nem vestes bordadas, nem o cuidado extremo com o exterior. Reconheço-lhes o valor simbólico, na medida em que servem para uma certa beleza cerimonial — desde que não se tornem armaduras. O problema não está no ornamento, mas no momento em que ele começa a falar mais alto do que a presença.
Assusta-me, sim, quando o brilho dos tecidos ofusca a escuta, ou quando o rigor do gesto esconde a ausência do coração. Assusta-me quando a forma se torna regra, e a regra se esquece da sua origem viva. Quando o zelo pela liturgia transforma o sagrado em vitrina.
Não me incomodam os sinais visíveis de fé — incomoda-me quando eles passam a ser medidores de santidade, quando o uso ou desuso de algo tão exterior se transforma em critério de verdade interior. Quando andar descalço é lido como irreverência, e não como um gesto de humildade ou proximidade com a terra. Quando o som de uma guitarra é visto como ameaça, não por ser desafinado, mas por ser demasiado humano, demasiado próximo, demasiado livre. Por não estar previsto.
O sagrado, para mim, não se reduz a um catálogo de objetos aprovados.
Habita o silêncio e o canto, a pedra e o corpo, o rito e o imprevisto.
Deus fez-se presença, e não protocolo.