Há realidades que não se deixam possuir por definições. Tocam-se apenas na medida em que nos deixamos tocar por elas. A Eucaristia é uma dessas realidades. Por isso, mais do que explicá-la, importa escutá-la; mais do que esmiuçar o seu rito, é fundamental deixar-se tocar pelo seu dinamismo. Existem muitas formas ou “portas” pelas quais se pode fazê-lo, mas nenhuma é suficiente se não se fizer esse êxodo: do visível para o invisível, do gesto para o sentido, do rito para o mistério.
Um dos acessos possíveis é através da performance litúrgica. A Eucaristia celebrada nas comunidades é, por vezes, reflexo da pressa e do automatismo. Os gestos cumprem-se, as palavras repetem-se, os fiéis respondem — mas quantos verdadeiramente escutam? A quantos a eucaristia toca, verdadeiramente? Na sua forma meramente visível, a liturgia corre o risco de se tornar espetáculo — não o é de modo algum; se na liturgia não se descobrir uma circularidade dinâmica entre lex orandi, lex credendi e lex vivendi, a celebração litúrgica — e a eucaristia — não passarão de ritos vazios, que não chegam a tocar o coração e que serão incapazes de comunicar o mistério que se pretende celebrar. Deste modo, a oração não nutrirá a fé, a fé não se traduzirá em vida, e a vida permanecerá alheia ao Evangelho.
Contudo, esse risco não é novo. Ao longo da história, a Igreja sempre procurou formas de devolver à celebração o seu alento original: uma ação viva, feita de memória, presença e antecipação. Estudar o Ordo Missae, tal como foi vivido e reformulado através dos séculos, permite-nos perceber que o rito não é estático, mas é “vivo”; no sentido em que não é mera repetição mecânica, mas expressão dinâmica da fé.
Mas o rito, por si só, não basta. Em Espera de Deus, Simone Weil diz algo do género: é preciso querer o vazio, pois só nele Deus pode entrar. Estas palavras não deixam de ser interessantes; para que a Eucaristia seja verdadeira presença — e não mero formalismo —, é necessário criar em nós um espaço de despojamento, uma fome interior que não se satisfaz com fórmulas ou gestos repetidos, mas que anseia pela essência do mistério. Daí a importância da mistagogia, deste adentrar-se na profundidade do mistério celebrado; não numa mera compreensão racional — até porque o mistério não se compreende, saboreia-se —, mas numa assimilação integral do que se celebra. Através desta introdução ao mysterion, o rito torna-se, portanto, oportunidade de encontro — um encontro verdadeiramente transformador, que desinstala, converte e se prolonga, inevitavelmente, na vida.
Neste contexto, compreende-se que a Eucaristia não é a repetição de um passado, mas a atualização viva de uma presença; de um Deus que se dá em fragilidade — no pão partido e no cálice oferecido. Esta dádiva não se realiza por magia. Ela nasce da escuta, do assentimento e do espanto. As orações eucarísticas, ou anáforas, são testemunhas dessa escuta. Nascem do coração orante da Igreja, do seu desejo de exprimir, com palavras humanas, o inefável de Deus. Ao serem pronunciadas, há uma irrupção do eterno no tempo: Cristo torna-Se presente. E não apenas recordado, mas vivo e atuante.
A estrutura destas orações revela a lógica do dom: começa-se com o louvor e a ação de graças; proclama-se, em seguida, o mistério pascal — a cruz, a morte, a ressurreição, que deixam de ser passado e tornam-se no hoje da história da salvação; invoca-se, depois, o Espírito, que desce sobre os dons e sobre os presentes, para que o pão e o vinho — e também a assembleia — sejam transfigurados em Corpo de Cristo.
Nada disto é neutro: a anáfora insere-nos numa corrente viva de intercessão e de pertença. Os nomes que nela são recordados, as intenções que nela se elevam, os vivos e os defuntos, os santos e os pecadores: todos são ali convocados, porque todos têm lugar à mesa. E quando a oração atinge o seu ápice, no amén da assembleia, ela não se encerra; pelo contrário, inaugura-se: ite, missa est — a comunidade, transformada pelo que celebrou, é agora enviada a prolongar, no quotidiano, o gesto de partir o pão.
É neste horizonte que ganha sentido a diversidade de anáforas herdadas pela tradição eclesial. A multiplicidade de orações eucarísticas não é, porém, sinal de fragmentação — antes pelo contrário; é reflexo de uma tradição viva, que foi, e é, capaz de expressar, em diferentes linguagens e contextos, a mesma fé no mistério pascal.
Cada anáfora é então como um rio que corre para o mesmo mar: Cristo vivo e ressuscitado. Em Antioquia ou em Alexandria, em Roma ou em Jerusalém, no coração da Etiópia ou nas ilhas do Pacífico, a Igreja, nas suas múltiplas expressões litúrgicas, proclama a mesma verdade: «Este é o meu Corpo, entregue por vós». A diversidade das anáforas não empobrece a unidade, mas enriquece-a; torna visível que o mesmo mistério pascal foi acolhido por comunidades distintas, com sensibilidades espirituais e culturais próprias. Cada tradição orante — seja a sobriedade latina, a solenidade bizantina, ou o fervor das Igrejas orientais — dá corpo à mesma fé, com cores, ritmos e ênfases distintos, mas convergentes.
Neste sentido, a anáfora não é apenas uma fórmula, mas um lugar teológico onde a Igreja respira o mistério.
Elson Medeiros