Composta em Antioquia, provavelmente entre os anos 378 e 390, De sacerdotio é uma das mais significativas obras literárias e teológicas de São João Crisóstomo. Estruturada inteiramente sob a forma de diálogo — um género literário típico do universo cultural greco-romano —, a obra apresenta-se como uma exposição eloquente da figura do sacerdote, desenvolvida através de um diálogo controverso, e em escala, entre dois amigos: João e Basílio.
A crise eclesial de Antioquia no final do século IV é o contexto essencial para compreender o De sacerdotio. A Igreja encontrava-se dividida por cismas doutrinais e tensões políticas; tudo isto comprometia gravemente a sua unidade e a própria credibilidade. Somava-se, ainda, a crescente politização dos cargos episcopais e a ambição pelo sacerdócio — que era visto como via propícia à vaidade, ao carreirismo e ao oportunismo. O ministério tinha, então, deixado de ser serviço para se tornar em instrumento de ascensão social. E além disto, existia também a questão do monacato: muitos cristãos desapontados e insatisfeitos com toda esta situação, viram no gesto de fuga mundi, o verdadeiro caminho de fidelidade ao evangelho. Surgem então os movimentos ascéticos, que se contrapõem aos grandes centros urbanos, onde a imagem do sacerdote estava irremediavelmente manchada pelo comodismo, pelo laxismo, pela perversão e pela mundanidade.
No meio de toda esta complexidade, João Crisóstomo tem a habilidade de, a partir das técnicas de retórica, compor o De sacerdotio, uma obra marcada pela tensão entre a grandeza do ministério e a fragilidade humana. Trata-se, por isso, de uma obra apologética e profética que, ao mesmo tempo que denuncia os desvios do clero, propõe um modelo alternativo, na identificação com Cristo.
Assim, a crise de Antioquia não é apenas um cenário histórico, mas uma interrogação existencial — e atual — que atravessa toda a obra: Como ser padre quando a figura do ministério parece obscurecida? Como ser fiel ao Evangelho numa Igreja ferida por vaidades e carreirismos? Como guiar o povo de Deus quando o próprio corpo eclesial está dividido e espiritualmente moribundo? É a estas e a muitas outras perguntas que João Crisóstomo procura dar resposta com o De sacerdotio;
Concluída a contextualização histórica e literária da obra De sacerdotio, torna-se pertinente aprofundar agora os traços fundamentais da teologia do ministério sacerdotal nela propostos. Nesse sentido, cabe apresentar a compreensão de Crisóstomo acerca da natureza sagrada deste ministério, das suas exigências éticas e espirituais, da responsabilidade pastoral que o configura e da autoridade espiritual que deriva da administração dos sacramentos.
Antes de mais, importa reconhecer que o sacerdócio não se esgota em qualquer dignidade conferida pelos homens; é, pelo contrário, uma realidade espiritual que transcende os critérios humanos. Diz Crisóstomo: «O sacerdócio é exercido na terra, mas possui a dignidade das realidades celestes»[1]. E acrescenta: «não foi um homem, nem um anjo… mas o próprio Paráclito que estabeleceu essa ordem»[2]. Aquele que é chamado a este ministério é, por isso, chamado a viver como se já estivesse diante de Deus, entre as Potências celestes.
Desde o início da obra, percebe-se que o sacerdócio não pode ser fruto de ambições pessoais, nem é mera resposta impulsos interiores. É puro dom e eleição pessoal — é algo que vem de fora, que ultrapassa o sujeito e o convoca. A narrativa confirma-o através da inquietação de João e Basílio perante o rumor de que teriam sido escolhidos para a ordenação. É interessante observar que não é o homem que se apresenta à Igreja; é a Igreja, enquanto Corpo de Cristo, que escolhe e chama o homem. A vocação sacerdotal não nasce, então, da iniciativa pessoal, mas do olhar de Cristo — acolhido e confirmado pela Igreja — que atribui uma missão cujo cumprimento reclama obediência à Sua vontade e plena consciência do mistério que encerra.
É precisamente por isso que o verdadeiro temor — não o medo servil, mas o respeito reverente — se torna o primeiro passo para acolher este dom. O sacerdócio não é apenas honra; é também cruz. É dignidade inseparável do risco. Quem abraça o ministério deve saber que será mediador entre Deus e o povo — não por mérito próprio, mas por graça. E essa mediação só pode ser fecunda se for vivida na transparência, na entrega e na intimidade com o Espírito.
E porque é uma realidade santa, o sacerdócio não pode dissociar-se de uma vida moral exemplar. Não basta o saber, a eloquência ou a capacidade de liderança: o sacerdote deve ser, antes de tudo, um homem de oração. A sua vida deve tornar-se reflexo da santidade de Deus no meio do povo. Diz Crisóstomo que «deve ser mais puro que os próprios raios do sol»[3]. A sua missão não é apenas funcional — é sacramental. E o sacramento exige verdade de vida.
Por isso, o maior risco para o ministro não está na ignorância, mas na duplicidade. A hipocrisia — viver de aparência sem conversão — é a sua maior ameaça. Quem sobe ao altar sem se deixar primeiro transformar corre o risco de ser causa de escândalo. E, no entanto, não se trata de perfeição, mas de autenticidade. De permitir que a graça atue, dia após dia, num coração disponível, humilde e vigilante.
A vida espiritual do sacerdote é o alicerce do seu ministério. Só quem vive em união com Deus, sustentado pela oração, pela escuta, pela penitência e pela caridade, pode ser verdadeiro pastor. Como recorda Crisóstomo, ninguém se pode considerar digno de ser sacerdote se não estiver disposto a deixar os seus próprios interesses de lado, para abraçar os «daqueles que lhe foram confiados, com um amor semelhante ao de Cristo, que dá a vida pelos seus».[4] O sacerdócio, assim compreendido, é um prolongamento da cruz — e um sacramento vivo do amor de Cristo que se entrega, sem reservas, pelos seus.
Crisóstomo entende, ainda, que o ministério ordenado é uma missão muito séria, e tem um peso espiritual mais forte do que qualquer outra vocação. O sacerdote é, antes de tudo, alguém que responde diante de Deus pelas almas que lhe foram confiadas: «responde não só pelos seus pecados, mas também pelos pecados alheios, se não os tiver combatido»[5]. É alguém que se consome pelos outros — vive por eles, sofre com eles, presta contas por eles. Por isso, à semelhança de um médico, que cura as feridas físicas, o sacerdote deve reconhecer as fragilidades espirituais do seu rebanho e saber tratá-las com cuidado e sabedoria, aplicando os remédios com sabedoria, muitas vezes contrariando a vontade dos doentes, porque muitos não sabem que estão doentes[6].
Este encargo pastoral só se compreende à luz de uma autoridade que não nasce do prestígio, mas da configuração com Cristo — a autoridade do sacerdote não é funcional, mas ontológica; não é fachada, mas real participação no ministério de Cristo. Deste modo, o sacerdote, nos sacramentos, não atua em nome próprio, mas in persona Christi. Daí a reverência com que Crisóstomo contempla o momento da consagração: «Pensas que ainda estás entre os homens …, e não percebes que, nesse instante, emigraste para o céu? … Que maravilha! Que amor de Deus pelo homem! Aquele que está sentado…, junto do Pai, é nesse momento segurado pelas mãos de todos e entrega-se àqueles que desejam abraçá-lo e recebê-lo»[7]. Nesse instante, é-lhe confiado um poder que «Deus não concedeu nem aos anjos nem aos arcanjos»[8]. É só ele — e nenhum outro — que pode, por mandato da Igreja, tornar presente o sacrifício de Cristo, tornar o tempo permeável à eternidade.
Este poder não se limita à Eucaristia. Ele prolonga-se também na reconciliação dos pecadores, na proclamação da Palavra, na bênção dos dons e na edificação da comunidade. Mas é sempre um poder que se exerce com temor, não com domínio. Exige do sacerdote uma vigilância interior constante, pois tem que ver com o próprio mistério da salvação. O próprio Crisóstomo confessa o peso desta tarefa: «assustou-me a dignidade do cargo, a gravidade do juízo, a quantidade de faltas, o número daqueles que precisam de correção e a multiplicidade dos perigos»[9].
A eficácia do ministério não provém, portanto, da perfeição moral do ministro, mas da fidelidade Daquele que o envia. E é precisamente neste paradoxo — entre a grandeza do dom e a fragilidade de quem o porta — que se revela a sacralidade do sacerdócio. O sacerdote é, ao mesmo tempo, vaso de barro e depositário de um tesouro inestimável; pecador e sacramento vivo da graça. Ele, que age na terra, «tem o seu lugar entre as potências celestes»[10]. E é nessa tensão sagrada que habita o mistério da sua vocação.
[1] Juan Crisóstomo, Diálogo sobre el sacerdocio, trad. Jesús Camaño (Madrid: Editorial Ciudad Nueva, 2002), 75.
[2] Ibid., 75–76.
[3] Ibid., 148.
[4] Ibid., 29.
[5] Ibid., 147.
[6] Cf. Ibid., 61–62.
[7] Ibid., 77.
[8] Ibid., 78.
[9] Ibid., 110.
[10] Ibid., 76.