Simone Weil: enquadramento biográfico

“TENHO A VOCAÇÃO DE PASSAR ENTRE OS HOMENS, CONFUNDINDO-ME COM ELES, A FIM DE AMÁ-LOS COMO SÃO”

Nascida a 3 de fevereiro de 1909, no seio de uma família judia abastada, Simone Weil cresceu num ambiente intelectual e culturalmente privilegiado, que desde cedo moldou a sua sensibilidade filosófica e social. Segundo Maria Clara Bingemer, os progenitores de Weil “sempre procuraram que o ambiente familiar estivesse imerso numa cultura refinada, somada a uma afetividade sadia e a uma abertura hospitaleira (…) Não descuidaram de nada na educação dos filhos, para que lhes fosse possível ter acesso aos mais altos conhecimentos”.

Provavelmente por causa dessa “nobre ambição” dos pais, de proporcionar aos filhos, desde cedo, tudo aquilo que lhes permitisse potencializar as suas capacidades intelectuais, quer Simone, quer o irmão mais velho, André, se revelaram excecionalmente dotados; cada um a seu modo. Simone nutria uma grande admiração por André, que se destacou no âmbito do cálculo, tendo vindo a tornar-se um dos mais brilhantes e prestigiados matemáticos do seu tempo; contudo, a genialidade de André causava em Simone um certo desconforto; não invejava os “dons extraordinários” do irmão, mas eles causavam-lhe consciência da sua própria mediocridade, uma tristeza profunda por não poder ter acesso ao “reino transcendente no qual os homens autenticamente grandes entram sozinhos e onde habita a verdade”.

Esta perceção, longe de a desencorajar, parece ter acentuado nela um profundo desejo de verdade e uma procura radical por um sentido existencial que não se limitasse ao brilhantismo intelectual, mas que estivesse enraizado na experiência concreta do sofrimento humano e na atenção compassiva ao outro.

Apesar de se considerar intectualmente inferior ao irmão, “Simone destacava-se por certos dons que, unidos à sua inteligência, convertiam-na numa menina e numa adolescente fora do comum”. Com 15 anos realizou o exame final do nível secundário e foi aceite num dos melhores institutos de ensino de Paris, o Liceu Henri IV, onde se preparou para ingressar na École Normale Supérieure, uma das instituições mais prestigiadas do ensino superior francês.

Na École Normale, Simone tem como mestre Alain, professor dessa prestigiada instituição, cuja influência marcou profundamente toda uma geração de jovens filósofos — incluindo a própria Simone. Alain distinguia-se no ensino da filosofia, não por construir sistemas fechados de pensamento, mas por cultivar o exercício racional do juízo. Muitos dos trabalhos que propunha aos seus alunos centravam-se em temas de filosofia política ou sociologia, numa tentativa deliberada de estabelecer um elo entre o pensamento político e a reflexão filosófica. Percebe-se, portanto, que as questões sociais se tornem um eixo fundamental na reflexão da jovem Simone, que, ainda durante os seus anos de estudante, manifesta o desejo de experimentar diretamente a realidade do proletariado.

No ano letivo 1929/30, Simone concluiu os estudos superiores; escolhe Descartes como tema de dissertação. Em escritos dessa época ela aborda a questão de Deus cuja conceção é demasiado cartesiana: um ser absolutamente perfeito, causa de si mesmo, cuja existência se demonstra pela própria ideia que temos dele. Trata-se, para Simone, de uma noção abstrata e racionalizada da divindade, ainda distante de uma experiência viva e existencial do sagrado, que ela só viria a descobrir mais tarde, através do sofrimento humano e da mística cristã.

Após concluir o curso de Filosofia, Simone começou a lecionar no Instituto Le Puy, ensinando filosofia, grego e história da arte. Paralelamente, envolveu-se intensamente em movimentos sindicais, dedicando-se às causas dos desempregados com grande empenho — a ponto de sacrificar horas de sono e refeições. Tornou-se porta-voz em várias manifestações, surpreendendo muitos por ser uma intelectual a apoiar tais reivindicações. Isto levou a que fosse associada à esquerda radical e ao anarquismo, de modo que sofreu inúmeras críticas, ameaças e pressões institucionais. No entanto, Simone acabaria por reconhecer os limites das revoluções marxistas, ao denunciar a corrupção do Partido Comunista russo, algo de que já suspeitava.

Entretanto Simone abandona o ensino e decide realizar um desejo antigo: trabalhar numa fábrica para viver na pele a condição proletária. Contudo, a sua saúde vai se debilitar extremamente justamente por causa das duras condições de trabalho a que é submetida. Como afirma M. Clara: “Na Renaut, última fábrica onde trabalhou, Weil vive mergulhada no medo, no sofrimento, na insegurança que lhe provocavam estas experiências”. Se antes existiam dúvidas, agora para Simone está mais que claro que o trabalho é escravidão.

Após recuperar a sua “dignidade de ser humano, por cima da debilitação física e moral”, Simone viaja para Portugal com os pais e tem o primeiro encontro com o cristianismo, que a marcará daqui por diante: “Após o meu ano trabalhando na fábrica, antes de retomar o ensino, meus pais me levaram a Portugal, e eu os deixei para ir sozinha a um vilarejo. Minha alma e meu corpo estavam, de algum modo, em pedaços. (…) Até então eu não tinha tido a experiência da infelicidade (…) Era à beira-mar. As mulheres dos pescadores andavam em volta dos barcos, em procissão, carregando círios e cantando cânticos certamente muito antigos, de uma tristeza de cortar o coração. (…) Lá eu tive de repente a certeza de que o cristianismo é por excelência a religião dos escravos, que os escravos não podem deixar de aderir ao cristianismo, e eu entre os outros.”

Outra experiência que marcou profundamente Simone foi a sua passagem por Assis: “algo mais forte do que eu me obrigou, pela primeira vez na vida, a me colocar de joelhos”; de igual modo, a sua estadia em Solesmes, onde assistiu todos os ofícios desde domingo de Ramos até terça-feira de Páscoa, porém, com dores de cabeça intensas; as suas enxaquecas, no entanto, permitiram-lhe compreender melhor a “possibilidade de amar o amor divino através do infortúnio”de tal modo que o pensamento da Paixão de Cristo entrasse nela de uma vez por todas. A partir de então, Simone abandona a pura especulação abstrata como método filosófico e vai enveredar cada vez mais pelo realismo, rescindindo com a ideia cartesiana de Deus: “Jamais me perguntei se Jesus era ou não uma encarnação de Deus; mas, de facto, eu era incapaz de pensar nele sem pensar que Ele fosse como Deus”.

A 13 de junho de 1940, Paris é declarada cidade aberta e no dia seguinte é tomada pelos alemães. Simone, como tantos outros parisienses, vê-se obrigada a fugir para não padecer os horrores do antissemitismo nazi. Refugia-se em Marselha, uma cidade no sul de França. Lá conhece o padre Perrin, um dominicano cego que prestava auxílio aos refugiados, com o qual Simone estabelecerá uma grande amizade; numa das conversas com Perrin, Simone “transmite o seu desejo de compartilhar a vida dos mais desafortunados, já não na fábrica, mas desta vez no campo”. Perrin encaminha-a a Gustave Thibon, um agricultor católico, na esperança de este lha empregar na sua quinta. Simone acaba por estabelecer igualmente com Thibon uma enorme amizade. Estas duas personagens serão fulcrais, na medida em que herdaram grande parte dos textos de Simone de cunho mais místico; Perrin uma série de correspondências e Thibon, alguns ensaios. Mais tarde este conjunto irá ser copilado, e dará origem à obra “Espera de Deus”.

Mas há medida que se alastra a ameaça nazi, Simone não tem outro remédio senão fugir. Parte com os pais para Casablanca, em Marrocos, onde vive num campo de exilados em condições precárias; e depois para os Estados Unidos. No entanto, sente-se inútil no território americano e empreende uma série de esquemas para voltar à Europa, até que consegue; não chega a Paris como deseja, mas a Inglaterra. Isto, entretanto, não lhe satisfaz e Simone “decide então orientar a energia que lhe resta para ser enviada numa missão arriscada a França, mas não consegue superar as resistências”.

No dia 15 de abril de 1943, Simone Weil foi encontrada inconsciente em casa e foi imediatamente levada para o hospital. Os médicos rapidamente identificaram um quadro grave de subnutrição. Quando questionada acerca da sua recusa em alimentar-se, Simone respondeu com firmeza e simplicidade que não conseguia permitir-se saciar a fome enquanto o seu povo, na França ocupada, continuava a sofrer com a miséria e a privação. Do hospital é transferida para um sanatório onde acaba por morrer a 24 de agosto de 1943. Não deixa de ser curioso que apesar das suas intuições cristãs no fim da vida e pelo facto de nunca querer ser batizada, enterraram-na num cemitério perto, na secção reservada aos católicos.

por Elson Medeiros

Fontes:

Maria Clara Bingemer, Simone Weil – mística de fronteira, Paulinas, 2016
Simone Weil, Espera de Deus, Editora Vozes, 2024

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