Romano Guardini e a Liturgia: Reflexões e Influências

Romano Guardini desempenhou um papel essencial na preparação do terreno para o Concílio Vaticano II, sobretudo de três formas: ao estabelecer um diálogo profícuo entre a Igreja e o mundo moderno, superando uma visão fechada de Igreja, postura que se intensificou após o Concílio Vaticano I; ao abandonar os métodos neoescolásticos em favor de uma abordagem mais experimental e indutiva na teologia, antecipando aquilo a que o Vaticano II designou de “sinais dos tempos”; e ao recuperar elementos fundamentais da fé cristã que, com o passar dos séculos, tinham sido marginalizados.

Nesta linha de resgate de conceitos fundamentais, de interpretação indutiva e de diálogo com a modernidade, Guardini propõe uma nova abordagem litúrgica. Para ele, a liturgia não deve ser oferecida segundo uma visão pautada em sentimentalismos superficiais, em simples manifestações artísticas ou em rígidas formalidades litúrgicas, mas de um modo educativo e pedagógico, que seja capaz de fazer intuir aquilo que lhe é mais essencial. Foi com este propósito que escreveu as obras O Espírito da Liturgia (1918) e Sinais Sagrados (1927).

A primeira obra citada do autor, O Espírito da Liturgia, procura ser uma verdadeira teologia da liturgia. Está dividida em sete capítulos que abordam os seguintes temas: a oração litúrgica, a comunidade litúrgica, o estilo litúrgico, o simbolismo litúrgico, a liturgia como um jogo, a seriedade da liturgia e a primazia do logos sobre o ethos.

No primeiro capítulo, “A oração litúrgica”, Guardini começa por afirmar, grosso modo, que qualquer edifício fundado sobre bases instáveis ou inseguras, mais cedo ou mais tarde, acaba por ruir; com isto, quer dizer que a oração litúrgica foi sujeita, ao longo de tantas circunstâncias históricas, sociais e culturais, às mais variadas perceções inadequadas, e, por isso, é fundamental lembrar quais são as suas leis fundamentais e imutáveis, as bases estáveis sob as quais deve assentar a verdadeira oração litúrgica. Deste modo, a verdadeira oração litúrgica é aquela oração sincera que procede do mistério divino e que brota naturalmente do coração do homem, sem cair num sentimentalismo exacerbado.

Depois, em “A comunidade litúrgica”, apresenta-nos a própria Igreja, o conjunto dos crentes tidos na sua unidade, e não na sua quantidade, como o sujeito da ação litúrgica. Cada um de nós, portanto, deve reger-se por esta lei fundamental: somos um só Corpo, não seres isolados, mas membros de uma unidade. E, por isso, é-nos exigido que sigamos uma lógica de comunhão, que se traduz muitas vezes em sacrifício, e não de egoísmo ou de persecução dos próprios interesses. Disto deriva, naturalmente, que na oração litúrgica tenhamos de nos associar a ações que muitas vezes são alheias às nossas necessidades espirituais do momento, mas são para um bem maior, o bem espiritual da comunidade. Por isso, Guardini convida os seus leitores a viver a vida dos outros membros “como se fosse a nossa própria vida”, juntar e incorporar os seus pedidos aos nossos, sentir as necessidades deles como se fossem nossas, contudo, sem que isso exija o abandono da nossa própria personalidade.

No terceiro capítulo, Romano Guardini reflete sobre o estilo litúrgico. Começa por caracterizá-lo como uma forma de espiritualidade que não se prende a gostos ou preferências pessoais, mas que transmite valores que servem para todas as pessoas de todos os tempos. A liturgia, ao estilizar a experiência religiosa, despoja-a de elementos individuais e foca-se no essencial. Como exemplo disto, o autor recorre à figura de Cristo, que no Evangelho é individualizada e particularizada, oferecendo a sensação física do lugar e do tempo, mas que na liturgia aparece como medianeiro majestoso entre Deus e a criatura, “do homem inteiro e verdadeiro, transfigurado pela Divindade”.

De seguida, o autor apresenta-nos dois temperamentos, duas atitudes ao encarar a relação alma-corpo/espiritual-material, ao levantar a questão acerca do sentido de um mundo carregado de mediações sensoriais na liturgia. Assim, em “O simbolismo litúrgico”, Guardini dá-nos duas perspetivas diferentes. A primeira estabelece que o espiritual e o corpóreo são duas realidades incompatíveis; a segunda estabelece uma relação fecunda entre estas duas. Contudo, ambas as perspetivas encontram dificuldades. Se, por um lado, não se pode distinguir nem separar o espiritual do corporal, ao ponto de já não haver ligação entre estes dois domínios, por outro lado, é preciso estabelecer um limite, uma distância. É aqui que entra o símbolo; o símbolo é, segundo Guardini, a ponte que une o espiritual e o corporal, e que expressa, de forma natural, o que é invisível em algo concreto. Este equilíbrio manifesta-se especialmente na liturgia, onde os gestos, os objetos e as formas não são meros detalhes, mas meios que tornam visível a profundidade espiritual, ajudando a quem nela participa a entrar na profundidade da ação litúrgica.

No capítulo seguinte, o autor propõe a liturgia como um jogo. Guardini afirma que a liturgia pode ser comparada à arte, pois não busca fins utilitários, mas a manifestação da vida da alma. Viver liturgicamente é transformar-se numa obra de arte viva na presença de Deus, sem outro propósito além de simplesmente estar e existir diante d’Ele. É recuperar a simplicidade da infância espiritual, abandonando a falsa prudência da vida adulta, que insiste em procurar razões e finalidades para tudo.

No penúltimo capítulo, “A seriedade da liturgia”, Guardini aprofunda a questão do papel do elemento estético e da beleza no opus litúrgico. Alerta para o perigo de reduzir a liturgia à estética, como se fosse mera obra de arte destinada a agradar aos sentidos. Para ele, a verdadeira beleza nasce quando a expressão exterior reflete com pureza e totalidade a essência interior.

No último capítulo, Guardini defende que “o logos tem primazia sobre o ethos“, ou seja, a verdade precede a moral na liturgia. A liturgia não busca transformar diretamente as ações dos fiéis, mas colocar a verdade divina no centro da prática litúrgica, de tal modo que ela ordene o homem a Deus.

Se O Espírito da Liturgia oferece uma ampla reflexão teológica e educativa sobre o significado da liturgia, Sinais Sagrados foca-se mais nos símbolos litúrgicos e na sua capacidade de expressar o mistério. De tom mais exortativo e de fácil leitura, esta obra explora a sensibilidade litúrgica, abordando elementos como o sinal da cruz, a água benta, o incenso e o altar, entre outros.

Deste modo, Guardini oferece uma visão íntegra e educativa da liturgia, unindo areflexão teológica e sensibilidade simbólica, de tal forma que as suas ideias influenciaram fortemente o Concílio Vaticano II, especialmente na elaboração da Constituição Sacrosanctum Concilium.

por Elson Medeiros

BIBLIOGRAFIA
Guardini, Romano. O Espírito da Liturgia. 2ª ed. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2017.
Guardini, Romano. Sinais Sagrados. 2ª ed. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2017.
Krieg, Robert Anthony. Romano Guardini: A Precursor of Vatican II. Notre Dame, Ind.: University of Notre Dame Press, 1997.

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