A obra Cristo, sacramento do encontro com Deus, de Edward Schillebeeckx, traz-nos uma perspetiva atualizada e renovada da sacramentologia, partindo do conceito de encontro, já que na doutrina clássica predominava uma «coisificação» da vida sacramental à ordem das categorias físicas, de tal modo que se começou a considerar os sacramentos como uma aplicação geral da ação de causa e efeito, que teve como consequência inevitável uma disposição automática e passiva, quase artificial, da graça sacramental.[1] A partir da análise dos dois primeiros capítulos desta obra de Schillebeeckx (Cristo, sacramento de Deus e a Igreja, sacramento de Cristo celeste, respetivamente), vejamos, então, que novas abordagens o autor nos oferece para uma compreensão mais dinâmica e positiva dos sacramentos.
Em primeiro lugar, Schillebeeckx começa por concordar, grosso modo, com o adágio «Homo capax Dei»[2]; deste modo, o homem possui uma abertura natural ao transcendente e uma capacidade de acolher a revelação divina, que se expressa em religiosidade, ou seja, em encontro pessoal da humanidade com Deus, através da história. E esse anseio pelo transcendente já se encontrava, de facto, nas expressões de religiosidade mais primitivas: «no paganismo, este desejo é vago e suscita já um sentimento obscuro de Deus Redentor que se compromete pessoalmente com a salvação dos homens»[3], «mas esta experiência religiosa interior, ainda não encontrou a forma visível da graça»[4], que permanecia, por assim dizer, velada nos mitos e nos rituais antigos.
Contudo, no Antigo Testamento, a revelação de Deus começa a ser percebida de forma mais nítida pelo povo de Israel. O que antes era vago e difuso, torna-se agora mais claro nas escrituras. No entanto, essa revelação ainda não é completa. Só com a vinda de Cristo é que o plano de salvação vai ser plenamente realizado. Cristo é, deste modo, o ponto chave da história da salvação, o momento em que o encontro com Deus se torna plenamente tangível e que a graça se torna totalmente visível.[5]
Ora, tal como afirma o concílio de Calcedónia, Cristo é uma pessoa em duas naturezas. Quer isto dizer que a segunda pessoa da Trindade é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, por isso, tudo quanto Jesus opera enquanto homem é ato de Deus sob forma humana. Deste modo, os atos de Jesus têm força divina de salvação: por serem atos de Deus, são causa de graça; «são dom divino da salvação em, e por forma exteriormente percetível e constatável, que concretiza esse dom»; dito de outro modo, os atos de Jesus são sacramento.[6]
Schillebeeckx foca agora a sua atenção na questão da corporeidade: «a Encarnação da vida divina implica aspetos corporais». E a partir desta constatação, estabelece que toda a relação inter-humana, todo o contacto dos homens entre si realiza-se mediante um corpo; é pelo corpo e no corpo que o homem se abre e se torna presente aos seus semelhantes. O corpo, no encontro humano, desempenha, pois, a função de intermediário; «é um sinal que cobre e revela, simultaneamente, a interioridade humana». Se o homem Jesus é a manifestação terrestre, visível e pessoal da graça, «o encontro humano com Jesus é o sacramento do encontro com Deus»[7]; então, para Schillebeeckx, Jesus é «o sacramento por excelência, o sacramento original» porque Ele é, «na sua humanidade, o único acesso à realidade da salvação»[8] e o «único mediador entre Deus e os homens»[9].
Deste modo, a encarnação tem um propósito salvífico: Deus quer divinizar o homem, levá-lo à comunhão consigo, mas sem antes redimi-lo e libertá-lo do pecado; é esta a missão de Jesus, levar aos homens o amor misericordioso de Deus, santificar a humanidade. Contudo, Jesus também é verdadeiro adorador: um movimento que parte da sua humanidade como resposta grata ao amor do Pai. [10]Desta forma, «a encarnação não é somente o acontecimento do Natal. Ser homem é fazer-se homem»[11], uma realidade que começa na conceção de Jesus no seio de Maria e que atinge o seu ápice na morte, ressurreição e glorificação. É por isso, que Schillebeeckx chama a este mistério de Jesus, ou da redenção, «mistério do culto santificador».[12]
Além do sentido antropológico inerente à realidade da encarnação, há que ter igualmente em conta o sentido existencial. Ao ser homem, Jesus é também filho do pecado, filho de Adão. Por isso mesmo, ao encarnar, o Filho de Deus participa numa humanidade atravessada por uma história de infelicidade e marcada pelo sinal da desobediência ou afastamento de Deus. E embora fosse verdadeiramente Deus, Jesus vivia constantemente numa situação de afastamento, «privado da glória de Deus»,[13] em que a realidade da morte e do pecado não eram indiferentes. Deste modo, «na sua vida terrestre, Jesus foi representante da humanidade pecadora, de tal forma que Ele pode realmente orar connosco a partir das profundezas da situação da infelicidade humana»[14]. E é principalmente da cruz que brota esse grito, o grito de um homem que sabe estar profundamente unido pessoalmente ao Pai, no mais profundo do seu coração, em espírito de obediência.
A morte de Cristo é uma morte messiânica, ou seja, não é apenas um evento histórico isolado, mas um gesto de salvação realizado em favor da humanidade. Schillebeeckx argumenta que, pela morte e ressurreição de Cristo, a humanidade é objetivamente redimida[15]; Cristo realiza, desta forma, um culto litúrgico, ou seja, um sacrifício em prol de toda a família humana.[16] A ressurreição de Cristo não só confirma a aceitação divina do sacrifício de Jesus, mas também inaugura a nova realidade de Cristo glorificado, que se torna o mediador da graça: «A aceitação do sacrifício de Jesus é precisamente a Ressurreição de Cristo, […] a resposta do Pai ao sacrifício da cruz […] Pela sua Ressurreição e elevação junto do Pai, Cristo converteu-se plenamente no Messias: o Filho de Deus com potestade na sua humanidade […] Deus suscitou na sarxde Cristo uma nova criação: a humanidade glorificada»[17].
Ora, sendo Jesus o Filho, que no seio da Trindade é totalmente pertença ao Pai e o princípio vital do Espírito Santo, Ele não poderá conceder o Espírito no plano da encarnação (enquanto homem), a não ser quando essa filiação se concretizar plenamente na Sua humanidade, através da Ressurreição e da glorificação.[18] A partir daí, inaugura-se a missão do Espírito Santo: «no seu amor ao Pai, mediante esse amor e por causa dele, o Senhor envia-nos, da parte do Pai, o Espírito de Filiação»[19]; «por graça, tornamo-nos aquilo que Ele mesmo é por natureza, filhos de Deus».[20]
De seguida, o autor levanta uma série de questões[21] que nos põem a pensar: «Se Cristo, pela sua ressurreição e glorificação, desaparece do nosso horizonte visível, deixamos de ter acesso à sua corporeidade salvífica. Então, como podemos aceder ao único meio de salvação? Ao sacramento de Deus?». Schillebeeckx explica que a humanidade está parcialmente privada do encontro corporal com Cristo e que «a vida cristã é um advento, uma espera […] ainda não é pleno encontro». Esta espera pelo encontro em plenitude só é compreensível, no entanto, porque encontramos já, em certa medida, Cristo glorificado através de prolongações da sua corporeidade celeste sobre a terra, os sacramentos.[22]Deus, de facto, ao estabelecer estes prolongamentos, permaneceu fiel à pedagogia salvífica: ciente da materialidade humana, isto é, da nossa natureza corpórea, de quem vive em virtude do seu corpo num mundo cheio de coisas e de pessoas, propõe sempre o Reino com uma roupagem terrena.[23]
Deste modo, Cristo continua a exercer a sua influência redentora sobre nós graças à sua corporeidade glorificada, por isso, da parte de Deus, a possibilidade do encontro é positivamente evidente. Mas e da parte do homem? Neste caso, e como nos diz o autor, é mais difícil: «para nós, homens terrestres, não podemos ainda encontrarmo-nos com Cristo revestidos de carne vivente, por causa da sua invisibilidade celestial»[24]; ora bem, isto «exige que o Senhor possa tornar-se tangível para nós, homens terrestres, assumindo as realidades terrestres não glorificadas»[25], e fá-lo através dos sacramentos. A sacramentalidade impõe-se então como uma ponte entre o afastamento ou a desproporção que existe entre o Senhor, Cristo celeste e a humanidade ainda não glorificada, e que torna recíproco este encontro.
A partir de tudo isto que foi dito, Schillebeeckx chega a uma conclusão: «os sacramentos não são coisas, mas encontros dos homens que vivem na terra com o homem glorificado, Jesus, por meio de uma forma visível, […] são a tradução visível e terrestre do mistério do culto santificador de Cristo»[26] e que se manifesta concretamente na Igreja.
Ora, se a Igreja é a manifestação terrestre da graça salvífica de Cristo, veículo que possibilita o encontro com o Senhor, ela é então Corpo místico de Cristo, é a forma corporal da salvação. Por outras palavras, é sacramento, em analogia com o sacramento original, que é Cristo.[27] Logo, também ela realiza um culto santificador, ou seja, é ao mesmo tempo, uma realidade salvífica e uma realidade cultual.
Segundo Schillebeeckx, podemos agora definir o que é uma ação sacramental da Igreja: os sacramentos são atos visíveis realizados pela Igreja como instituição de salvação, fundamentados no caráter do sacerdócio, batismo ou confirmação.[28] Ora, isto ultrapassa a conceção dos sete sacramentos tradicionais; inserimo-nos num conceito mais amplo da sacramentalidade da Igreja. Um sacramento é, antes de tudo, um ato pessoal de Cristo que nos acolhe na realidade visível da Igreja terrestre, de forma funcional.
Em jeito de conclusão, podemos fazer, então, um apanhado geral acerca das principais ideias de Schillebeeckx acerca da sacramentalidade. Em primeiro lugar, o autor afasta-se de uma visão escolástica que vê os sacramentos como elementos automáticos da graça, e destaca a centralidade do encontro com Deus, que ele refere como uma experiência pessoal e relacional, que se torna tangível na pessoa de Cristo, o sacramento original. A encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo são, para Schillebeeckx, a manifestação plena e visível da graça divina, e é através de Cristo que os homens têm acesso à graça da salvação.
A ênfase na corporeidade, como mediadora do encontro com o divino, revela, por outro lado, a importância dos sacramentos como prolongamentos da presença de Cristo glorificado na terra. A sacramentalidade da Igreja, enquanto Corpo Místico de Cristo, surge como a via pela qual podemos participar no mistério da salvação, mesmo na ausência do Cristo visível. O sacramento, assim, deixa de ser visto como algo isolado ou passivo, e torna-se um meio ativo e eficaz do encontro com a graça de Deus, fundamentado na ação redentora de Cristo.
Em última instância, Schillebeeckx convida-nos a compreender os sacramentos, não como objetos ou rituais repetitivos, mas como momentos de verdadeira relação e encontro entre os homens e Deus, em que acontece uma participação viva no mistério da salvação. A sacramentalidade, portanto, revela-se como um espaço de encontro e transformação, em que o único e grande mistério, Cristo se torna presente na Igreja e no coração daqueles que se encontram com Ele.
Por Elson Medeiros
[1] Cf. Edward Schillebeeckx, Cristo, sacramento del encuentro con Dios., 11
[2] Cf. Ibid., 15-16
[3] Ibid., 16
[4] Ibid., 16-17
[5] Cf. Ibid., 18-22
[6] Cf. Ibid., 22-24
[7] Ibid., 24
[8] Ibid. 24
[9] Ibid. 24
[10] Cf. Ibid. 26-28
[11] Ibid. 28
[12] Ibid. 28
[13] Ibid. 37
[14] Ibid. 38
[15] Cf. Ibid. 44
[16] Cf. Ibid. 41-42
[17] Ibid. 44
[18] Cf. Ibid. 45
[19] Ibid. 49
[20] Ibid. 52
[21] Cf. Ibid. 52-53
[22] Cf. Ibid. 54
[23] Cf. Ibid. 55
[24] Ibid. 56
[25] Ibid. 57
[26] Ibid. 58-59
[27] Cf. Ibid. 62-64
[28] Cf. Ibid. 66