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Estado da questão
Muito se tem refletido do ponto de vista ético e legislativo sobre a Inteligência Artificial, para regular a sua utilização. Mas cabe perguntar: o que é que esta tecnologia em desenvolvimento revela ao homem sobre o próprio homem? A resposta a esta pergunta vai determinar o futuro da fé e da religião nas próximas gerações.
O que é a inteligência?
O termo “inteligência” atribuída à IA [Inteligência Artificial] pode ser tolerado na linguagem, mas não é rigoroso. A inteligência em sentido próprio, como marca específica do ser homem, é a capacidade de “ler entre” ou “ler dentro” (intus+legere ou inter+legere, não entro na discussão etimológica). Isto traduz a capacidade de ler a realidade que está no interior (intus) ou entremeada (inter) nas aparências que os sentidos captam pela experiência.
Exemplo: Os meus olhos captam uma imagem de cadeira, com certas características de cadeira (os sentidos captam apenas a aparência de cadeira =acidentes ou espécies). A minha inteligência é capaz de penetrar essa aparência e inteligir que há alguma coisa na realidade que dá suporte a essa imagem captada pelos meus olhos. A IA pode fazer análises e articular informações numa escala e precisão muito maior que nós, mas não pode estar convicta da sua própria existência e da existência de um mundo real. A IA não tem sede da verdade, não anela pela adequação entre aquilo que ela afirma e o mundo real. Mesmo que uma IA responda “existo” à pergunta “existes?”, essa autoconsciência seria tão profunda como a de um papagaio que diz que existe.
Se cremos que a IA pode vir a alcançar a inteligência de tipo humano, temos uma noção muito pobre de inteligência humana (com consequências danosas para a fé). Há muitas operações que a máquina pode replicar e até fazer melhor do que o homem. Mesmo que as máquinas possam desenvolver algum princípio apetitivo ou emotivo, seria análogo ao dos animais (que têm apetites sensíveis e certas sensações emocionais limitadas ao fenómenos eletroquímicos do organismo). Dito mais esquematicamente, talvez possa vir a ser possível reproduzir tecnologicamente aquilo que Aristóteles chama de alma sensitiva, porque esse nível ontológico dos seres não implica nada de verdadeiramente espiritual, nem superior ao mundo material.
Tese: A alma humana, pelo contrário, numa perspetiva cristã, possui um salto qualitativo radical, um princípio irredutível e irreplicável, estritamente imaterial, de onde provém a liberdade humana. Algo tão elevado como o espírito não pode brotar da matéria nem do acaso (o efeito não pode ser maior do que a causa).
O darwinismo e “inteligência artificial”
Quando a evolução foi teorizada, o principal obstáculo para a teologia não tinha que ver com a interpretação fundamentalista do Génesis. Isso também existiu e avolumou o problema, mas nunca foi a pedra de toque do Magistério. A evolução como descrição de um processo nunca foi formalmente condenada pela Igreja. Houve alguma perplexidade, sim. De facto, até se olhou com desconfiança para a hipótese teológica do evolucionismo moderado ou espiritualista de Mivart ou Zahm (Deus criou o homem por meio do processo evolutivo, mas interveio mais diretamente para criar a alma). O que a Igreja se opôs com veemência constante, e é válido ainda hoje, é a visão materialista da evolução, que não admita no homem um princípio anímico que não veio do mero processo evolutivo. Isto estava salvaguardado na hipótese de Mivart. Mesmo que olhada com alguma desconfiança, era tolerada porque não ultrapassava esta linha vermelha. Este é o ponto inegociável! Pode a inteligência plena e a alma intelectiva ser replicada, criada ex materia pelo homem em vez de ex nihilo por Deus? A questão adormecida que se colocou outrora a respeito da evolução (“pode a alma vir da matéria?”) levanta-se novamente a propósito do futuro desenvolvimento da IA.
Pensar que a IA é ou poderá vir a ser tão profunda em consciência de ser, autoperceção, emoção e volição como o homem, pressupõe uma visão materialista perigosa para a fé. Admito que possa vir a simular muito bem algumas destas faculdades, mas jamais possuir com propriedade a profunda noção do ser, a apreensão da existência e a volição.
O que vem a seguir?
«Se já conseguimos “criar a inteligência”, confirma-se que a noção de alma ou espírito é uma superstição piedosa de pessoas fracas que não conseguem suportar a inexistência do mundo espiritual, logo, Deus não existe.» Não tardará até que alguns professores afirmem algo semelhante nas escolas. Urge crescer na compreensão do que significa a inteligência humana na sua singularidade face a esta tecnologia, também chamada, mas impropriamente, de inteligência. Não o digo por temer os avanços futuros (há de ser o que for), mas porque a formulação de algumas hipóteses sem real sustentação experimental está apoiada em pressupostos materialistas dos quais a Igreja sempre, e corretamente, se distanciou.
Afonso Silveira