E se fôssemos nós, como seria?

Em 1500, dava-se uma das mais representativas descobertas para a História de Portugal – a Terra de Vera Cruz, um imenso território ignoto, povoado por gentes que desconheciam Cristo.

Os missionários dos séculos subsequentes, principalmente os jesuítas, encontraram costumes rudes e bárbaros. Até o infanticídio e a antropofagia eram tidas como práticas razoáveis! Então pensaram os jesuítas – «O que importa é amar! Eles não fazem com má intenção, nem têm consciência de pecado. E é preciso ver que Jesus disse “não matarás” (Mt 19, 18) há mais de milénio e meio de anos… Fazia sentido naquele contexto, mas a realidade aqui é muito diferente. A prática desta sociedade destoa da doutrina da Igreja. Temos de ser realistas e colocar no centro a pessoa e não os nossos preceitos e regrinhas.» E, felizes, viveram com os indígenas provando iguarias de carne humana. Nunca lhes ocorreria a obsessão pelo integrismo romano, que podia pôr em causa a unidade e o diálogo com os índios.

O parágrafo anterior é clamorosamente irónico e falso, mas se tivéssemos sido nós a evangelizar a América (mutatis mutandis, também a África e a Ásia), provavelmente teria sido assim. Talvez hoje também nos sintamos numa terra de indígenas por evangelizar. Como notaram os bispos portugueses no relatório sinodal, há um “contraste entre o ensinamento tradicional versus normalidade” e que “se apresenta como desatualizado”. Resta perguntar: querem um Evangelho diferente? Notamos este contraste ao nível da contraceção, da indissolubilidade matrimonial, doutrina política, moral sexual, os preceitos da Igreja entre muitos outros pontos… Alguém poderá objetar: “não comparemos o infanticídio e antropofagia com a omnipresente contraceção ou segundas uniões, que são coisas que não prejudicam ninguém”. Respondeo: Outros missionários houve que foram desmembrados por pregar contra a poligamia, isto é, o adultério. São João de Brito, por exemplo, poderia ter dito a um príncipe de Maravá – “se o casamento singular não funcionou para ti, porque não haverias de tentar a felicidade com uma “companheira” diferente?” Teria sido mais fácil para o nosso mártir. Ele preferiu perder a cabeça por desagradar a uma das concubinas do príncipe, para ser fiel à verdade de Cristo, por amor às almas daqueles pecadores que Deus chamava à conversão e santidade! Não era um legalismo gratuito que o movia, mas o amor apaixonante que quer contagiar os outros com o desejo da santidade e da cruz– Caritas Christi urget nos (“o amor de Cristo nos impele” – 2 Cor 5, 14).

Não são maiores os nossos desafios do que os dos últimos dois mil anos. Sejamos menos mesquinhos. Não fechemos o nosso horizonte nos nossos “probleminhas” de hoje e olhemos para o sangue derramado que nos precedeu e honremos a herança dos mártires e missionários. Prostremo-nos em terra (Sl 95,6), revistamo-nos de saco e cinza (Jn 3, 6) e oremos sem cessar (1 Ts 5, 17). Já experimentaram? Depois de o fazerem, digam-me se a secularização continuará a avançar.

Façam o malabarismo que quiserem para conquistar o homem de hoje e aplicar o Evangelho à realidade atual (eu também faço), mas não se venda gato por lebre. Não temos outro remédio a não ser convertermo-nos a nós próprios e aos outros ao único Evangelho, a fim de instaurar todas as coisas em Cristo. (Recapitulare omnia in Christo – Ef 1, 10).

* A pintura supra trata-se do Martírio de São João de Brito na Índia, autor desconhecido (Igreja do Colégio de Ponta Delgada)

Afonso Silveira, 2º ano

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