De Baptismo: A Teologia Sacramental de Tertuliano

A obra De Baptismo, de Tertuliano, escrita por volta de 198, é provavelmente o primeiro e o único tratado sobre um sacramento anterior ao Concílio de Niceia. Mas antes de iniciarmos a análise do conteúdo, é importante situar e contextualizar esta obra-prima de Tertuliano.

Estamos no final do século II e início do século III. O cristianismo ainda estava a crescer e a organizar-se. As comunidades cristãs iam-se organizando aos poucos por diferentes regiões do Império, sob a orientação dos bispos, e iam pondo em prática, aquilo que ora tinham recebido diretamente dos apóstolos, ora através de outros, em linha de sucessão apostólica. Contudo, existiam dois perigos que ameaçavam constantemente este estado original: a crescente discriminação contra os cristãos e a divulgação de heresias.

Embora as perseguições em massa ainda não tivessem começado, Tertuliano dá a entender que já ocorreram martírios, quando se refere ao “batismo de sangue”. Este, de facto, será um problema que os cristãos terão de enfrentar num futuro próximo. No entanto, o que mais chama a atenção neste contexto, e que motivou a escrita desta obra, são os grupos itinerantes, mais ou menos organizados, que ameaçavam a ortodoxia da embrionária da Igreja. Como ainda não havia nada formalizado ou escrito, e dado que os conteúdos da fé eram transmitidos oralmente, por aqueles com autoridade para isso, a fé estava vulnerável e exposta às mais diversas ideologias e interpretações. É diante deste cenário que Tertuliano escreve o De Baptismo, uma verdadeira defesa do primeiro sacramento contra o maniqueísmo dos Caimitas, que diziam que a salvação era alcançada através da purificação da alma, e nunca através de rituais materiais, como o batismo, já que toda a matéria é má e corrompida.

E, portanto, ao mergulhar nas páginas de De Baptismo, somos logo recebidos por uma imagem singular e poética: “Nós, os peixinhos segundo o nosso “Peixe”, Jesus Cristo, no qual nascemos, só nos salvaremos se permanecermos na água”. Esta alegoria, de um génio incrível, além de nos transportar para o coração da mensagem do autor, faz referência à representação primitiva de Jesus como ichtys, que como sabemos, tinha um significado teológico profundo na Igreja nascente; além de ser acrónimo de “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”, significava literalmente “peixe”. Por isso, esta alegoria não surge ad hoc, mas no fundo sugere que é através da água/batismo que nos identificamos com Cristo, e que nos salvamos. E a forma como isto acontece é tão simples que a impressiona a inteligência: “Tudo acontece … sem grande luxo. O homem desce à água, é imerso nela enquanto se pronunciam algumas palavras, e sai da água pouco ou nada mais limpo do que antes”.

Assim, com a sua maestria, Tertuliano vai retroceder aos relatos da Criação para tentar mostrar que, no estado original das coisas, o único elemento que parecia contrariar a situação caótica era a água, a matéria perfeita desde a origem, e sobretudo, o grande princípio de vida. Para completar a sua argumentação, recorda também que nas origens, o Espírito santificou a água, pairando sobre ela. Por estes motivos, toda a água, em virtude da antiga prerrogativa da sua origem, participa do mistério da nossa santificação.

De facto, encontramos nas mais diversas expressões religiosas pagãs, práticas de purificação com água. Mas para Tertuliano, o batismo, prefigurado pelas águas da piscina de Betsaida supera esses ritos; aponta para uma cura que vai mais além da sua propriedade termal evidente: o batismo purifica o corpo e prepara o espírito para receber o Espírito Santo, de modo que nos tornamos inabitados pela Trindade.

Tertuliano, depois, vai referir uma série de aspetos como a unção pós-batismal, e a imposição das mãos, que nos ajudarão, no futuro, a reconstituir um ritual batismal original e primitivo. E, após referir-se às águas do Mar Vermelho e afirmar que a água adquiriu uma fulcral importância no ministério de Cristo, antecipando o seu valor salvífico, vai ilustrar esta tese recorrendo a uma série de exemplos: “Ele mesmo é batizado na água; convidado para as núpcias, é pela água que inaugura o começo do seu poder; quando prega, convida os sedentos a beber a sua água eterna; quando fala da caridade, reconhece como obra de amor o copo de água dado ao próximo; descansa junto de um poço; caminha sobre as águas; gosta de navegar sobre a água; lava os pés dos seus discípulos com água… quando é condenado à cruz, a água intervém ainda pelas mãos de Pilatos, e, quando é trespassado pela lança do soldado, irrompe água do seu lado.”

Passamos agora a outra questão essencial na apologia de Tertuliano: a distinção entre os vários tipos de batismo. Partindo da premissa que o batismo instituído por Cristo, supera qualquer prática batismal anterior, Tertuliano vai, uma vez mais, com uma sagacidade que lhe é própria, afirmar que embora o batismo de João tivesse a sua importância, servia apenas como preparação, apontando para o verdadeiro batismo, que adquire a sua plena eficácia no mistério pascal de Cristo. E por isso, ninguém pode chegar à salvação sem o batismo.

Contudo, pelo modo como o autor defende a próxima tese, dá a entender que os Caimitas negavam que os apóstolos tivessem sido batizados. Ora, se os apóstolos pregaram um batismo para salvação, e se eles próprios não foram batizados (até porque não existem evidências) qual o sentido disto tudo? Tertuliano responde com um argumento que deita por terra os maniqueus: por causa da prerrogativa de serem os primeiros chamados e, pelo facto de viverem na familiaridade pessoal de Cristo, os apóstolos não necessitavam de um batismo propriamente dito, pois Aquele que eles seguiam era o mesmo que tinha prometido a salvação a cada um.

A reflexão de Tertuliano incide, agora, sobre o batismo de sangue como uma das mais profundas interpretações teológicas do sofrimento de Cristo. Este conceito singular, que relaciona a morte sacrificial ao batismo, é uma expressão da eficácia redentora do sangue de Cristo, que substitui o batismo tradicional com água para aqueles que, por condições extremas, não puderam ser batizados de maneira convencional. O batismo de sangue torna o mártir um participante direto da obra redentora de Cristo, já que o sangue, na visão de Tertuliano, é visto o veículo de glorificação, ao contrário da água, que assume o papel da purificação. Contudo, estes dois tipos de batismo não se anulam, pois brotaram juntos da ferida do corpo trespassado; deste modo, aqueles que creem no seu sangue, ainda têm que ser lavados na água; e os lavados na água, ainda tomarão o seu sangue.

A abordagem de Tertuliano acerca do ministro do batismo também é notável, e reflete a importância da hierarquia e da autoridade dentro da Igreja. Para ele, o batismo não pode ser administrado de forma leviana ou desordenada. O bispo, como responsável principal pela Igreja, é o ministro do sacramento, e por isso, deve garantir a sua integridade; de igual modo, os presbíteros e os diáconos, em comunhão com o bispo e sob a sua autoridade, podem administrá-lo. Contudo, o batismo pode ainda ser realizado por leigos já que o que todos recebem no mesmo grau, todos o podem dar no mesmo grau. Tertuliano, no entanto, destaca a necessidade do discernimento, de modo a evitar abusos, e apela a que se respeite o ministério do bispo; curiosamente, Tertuliano refuta completamente a ideia da administração do sacramento do batismo por mulheres; quem sabe, para evitar qualquer associação com as práticas dos cultos mistéricos?

De qualquer modo, quando aborda os candidatos ao batismo, Tertuliano adverte contra a pressa em conceder este sacramento. Para ele, o batismo não deve ser administrado sem a devida preparação, o que supõe, em primeiro lugar, a demonstração de uma fé genuína e consciente. Citando o exemplo do eunuco de Filipe, que, ao pedir o batismo, demonstrou estar espiritualmente preparado para receber o sacramento, Tertuliano ensina que a fé não é somente uma condição passiva, mas deve ser, sobretudo, uma decisão ativa, uma adesão plena à salvação oferecida por Cristo. Ele também alerta que, no caso das crianças, o batismo não deve ser realizado sem que haja a maturidade e a compreensão necessárias para a aceitação do sacramento. A fé, segundo o autor, é um elemento central e deve estar presente na decisão do batizado, assegurando que aqueles que se aproximam do sacramento o façam com plena consciência do seu significado.

Por fim, a preparação para o batismo é encarada por Tertuliano como um processo rigoroso. A preparação envolve a oração, o jejum, a vigilância e a confissão, elementos que têm como objetivo purificar o candidato e prepará-lo para uma vida nova, em Cristo.

O batismo, para ele, não é apenas um rito simbólico, mas um banho de regeneração, algo que marca uma transformação radical na vida do cristão. Tertuliano recomenda, ainda, o jejum mesmo após o batismo, dando a entender que a vida cristã é uma jornada contínua de perseverança, mesmo após a experiência inicial de salvação.

A obra De Baptismo, de Tertuliano, é deste modo, essencial para compreender o desenvolvimento da teologia sacramental nos primórdios do cristianismo. Com uma retórica incisiva e uma visão teológica excecional, Tertuliano explora, então, a centralidade do batismo como meio de regeneração e iniciação na vida cristã, abordando não só o seu significado espiritual e teológico, mas também as questões práticas relativas à sua administração. Profundamente fundamentado nas Escrituras e na Tradição, este tratado além de responder aos Caimitas, um grupo herético de tendência maniqueia que prescindia do batismo como meio de salvação, oferece, ao mesmo tempo, uma visão estruturada da organização da Igreja diante dos vários desafios internos e externos. Por isso, De Baptismo vai além de uma simples defesa da fé, e destaca-se, sobretudo, pela forma como afirma o valor universal do batismo, e como reitera a sua importância no centro da fé cristã, e sobretudo, no seio de uma Igreja nascente.

Por Elson Medeiros

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