Casti Connubii: A perspectiva católica sobre o amor conjugal e os seus desafios

Promulgada há quase cem anos, esta carta encíclica de Pio XI, de 31 de dezembro de 1930, pretende evocar a doutrina católica acerca da “natureza do matrimónio cristão, da sua dignidade e das vantagens e benefícios que dele dimanam”, de forma a esclarecer, iluminar e até mesmo condenar as práticas da sociedade do pós-guerra.

Como sabemos, o período pós I Guerra Mundial (1914-18), foi marcado por uma grande prosperidade económica, social e cultural, levando a mudanças drásticas na forma de pensar e de viver dos grandes centros urbanos, que não tardaram em impor-se de forma generalizada. A década de vinte do século XX, também conhecida por “Loucos anos vinte” foi marcada por um espírito modernista, que permitiu a “liberalização dos costumes, uma nova vivência das cidades, não apenas voltada para o trabalho, mas para os divertimentos noturnos”1 e a chegada da mulher a espaços, até então, só permitidos aos homens.

É perante este cenário de descontinuidade e de rutura com os costumes tradicionais que Pio XI vai escrever a encíclica. Assim, ao “iluminar as inteligências dos homens” (ou se quisermos, da sociedade pós-guerra), relembrando-os dos fundamentos teológicos do matrimónio, vai apresentar os seus bens: os filhos, a fidelidade conjugal e o sacramento.

Depois, denunciar os erros que se cometem contra o princípio e fundamento da sociedade doméstica, mormente contra a fecundidade, contra a fidelidade e contra o sacramento, focando-se no divórcio. E ciente da situação, vai acabar por propor soluções ou remédios contra este mal, que passam pela revalorização do matrimónio como instituição divina, pelo papel da educação cristã, pela preparação sacramental e pela assistência social para a ordem social.

Se a encíclica Arcanum Divinae Sapientiae (Leão XIII, 10 de fevereiro de 1880) visava essencialmente tratar da intervenção estatal no âmbito matrimonial, condenando as normas civis que permitiam o divórcio e a dissolução do vínculo conjugal, a presente carta sobre o matrimónio cristão parece partir do pressuposto de que a sociedade à qual se dirige já não conserva os conceitos essenciais e estruturantes do sétimo sacramento, anteriormente expostos pela Arcanum. Assim sendo, Pio XI dedica uma parte significativa desta encíclica a expor, de modo renovado, os princípios do casamento cristão, com o intuito de orientar seus leitores à “puríssima lei de Cristo”.

Começando por afirmar que o matrimónio foi elevado a sacramento por Cristo, Pio XI reitera o seu caráter sagrado e inviolável e a sua perpétua estabilidade, garantindo que ninguém pode suprimir o que é de instituição divina. Dito isto, declara que de Deus provém a instituição, os fins, as leis e os bens do matrimónio; e do homem, com a ajuda de Deus, depende, naturalmente, a própria existência do sagrado consórcio. Estes bens são os filhos, a fidelidade conjugal e o sacramento.

O primeiro bem do matrimónio é a procriação e a educação dos filhos. Este primeiro bem vem na linha do “crescei e multiplicai-vos” e diz respeito não só à reprodução biológica, mas também à inserção da prole na grande família de Deus, que é a Igreja, através do batismo. Juntamente com este dever, vem a responsabilidade de educar a descendência na fé cristã. O segundo bem é a fidelidade conjugal, que consiste na união exclusiva entre os esposos, caracterizada pela absoluta unidade, pela castidade e pelo amor conjugal. Finalmente, o terceiro bem é o sacramento em si, que se caracteriza pela indissolubilidade e firmeza invioláveis, em analogia com a união entre Cristo e a Igreja.

Por ser sacramento, o matrimónio confere à união, a graça necessária para viver a santidade. Esta graça proporciona aos cônjuges forças sobrenaturais, ajudando-os a cumprir os seus deveres com fidelidade até ao fim da vida, e fortalecendo-os para viveremde acordo com a vontade divina.

Contudo, esta fecundíssima união de Cristo com a sua Igreja, vê-se ameaçada, segundo Pio XI, por certas representações culturais. No período pós-guerra, com o surgimento das primeiras indústrias cinematográficas (Hollywood), o amor conjugal começou a ser romantizado de uma forma que tende a menosprezar e a ridicularizar o matrimónio, e que se vai expressar também na literatura, no teatro, e noutras formas artísticas. Do mesmo modo, parece ter-se generalizado e normalizado o divórcio, o adultério e outros atentados contra o sagrado consórcio; e estas ideias penetram de tal modo na sociedade que afetam e influenciam ricos e pobres, trabalhadores e patrões, educados e ignorantes, solteiros e casados, crentes e não crentes, adultos e jovens.

Esta mentalidade traz, segundo o Santo Padre, enormes consequências – novas formas de matrimónio (temporário, de experiência, amigável), que reivindicam a total liberdade e direitos de um matrimónio tradicional, mas prescindem da indissolubilidade do vínculo e da procriação; uma visão negativa da prole que considera os filhos como um fardo indesejado que deve ser evitado a todo custo através da distorção do ato conjugal; nesta linha, surge a questão do aborto, o atentado contra a vida dos nascituros, ainda no ventre, só pelo facto de não serem desejados. Temos ainda, a normalização da infidelidade e das relações extraconjugais, do matrimónio misto e do divórcio; por fim, o papa considera igualmente a emancipação da mulher como um erro contra a fé conjugal.

Embora os princípios de Pio XI ainda sejam relevantes na moral católica, mesmo após quase um século, no que diz respeito à emancipação feminina, é necessário levantar algumas objeções. Ao longo destes noventa e quatro anos a sociedade tem passado por transformações que desafiam as visões tradicionalistas sobre a missão da mulher. A emancipação feminina trouxe mudanças que, longe de enfraquecerem a instituição conjugal, têm contribuído para um matrimónio mais igualitário, em que marido e mulher compartilham responsabilidades, quer no âmbito familiar quer no profissional.

Mais que uma presença passiva e dependente, a esposa é, de facto, uma parceira ativa e corresponsável na construção da família. O olhar inicial de Pio XI sobre a emancipação feminina refletia, de facto, o contexto do seu tempo, onde a rutura com os costumes tradicionais parecia ameaçar as bases da família cristã. Contudo, ao longo das décadas, ficou claro que o avanço dos direitos das mulheres e a sua emancipação, não só não destruíram os valores cristãos, como também proporcionaram uma nova forma de vivência do casamento e da maternidade, baseada na igualdade e no respeito mútuos.

Um exemplo disto é a tese fundamental da encíclica Mulieris Dignitatem de João Paulo II, promulgada cinquenta e oito anos após a Casti Connubii, que promove já uma visão de complementaridade e de cooperação entre os sexos e que destaca a importância da presença feminina em todos os aspetos da vida eclesial e social.

Embora a encíclica Casti Connubii tenha cumprido o seu papel, ao reagir a uma decadência moral de uma sociedade pós-guerra em rápido processo de transformação, que ameaçava, em diversos aspetos, a própria compreensão do matrimónio e da família; e embora muitas das suas afirmações sobre a doutrina matrimonial ainda sejam relevantes, mesmo passados quase cem anos, algumas ideias precisam ser repensadas à luz das transformações ocorridas neste período. Assim, é importante considerar as contínuas exortações do magistério e dos papas, a fim de se obter uma compreensão mais aprofundada, enriquecedora e integral dos princípios fundamentais da fé cristã numa sociedade em constante evolução.

Por Elson Medeiros

Scroll to Top