Por Elson Medeiros
Este estudo tem como propósito apresentar uma análise aprofundada do pensamento de Simone Weil, dando especial atenção à sua obra Espera de Deus (Attente de Dieu). Nos próximos parágrafos, serão explorados os principais elementos que estruturam o percurso intelectual e existencial da autora, desde o seu contexto biográfico até à maturação de uma espiritualidade marcada pelo sofrimento, pela atenção e pela espera silenciosa diante do divino.
O ponto de partida desta reflexão será a compreensão do infortúnio e da experiência do abandono, categorias centrais no pensamento weiliano, seguidas pela análise das atitudes de discernimento, obediência e atenção, que culminam na aniquilação do eu e na abertura à graça.
Ao longo deste estudo, pretende-se responder à questão: como é que a experiência do sofrimento, longe de ser um obstáculo, se revela, para Simone Weil, como um autêntico lugar de encontro com Deus, abrindo possibilidades de sentido e Esperança, mesmo em contextos de extrema adversidade?
Bem, antes de mais, é essencial saber quem é Simone Weil e em que contexto surgiu Attente de Dieu. Nascida a 3 de fevereiro de 1909, no seio de uma família judia abastada, Weil cresceu num ambiente culturalmente privilegiado. Segundo Maria Clara Bingemer — uma biógrafa da nossa autora — os pais de Weil procuraram, desde cedo, «que o ambiente familiar estivesse imerso numa cultura refinada, somada a uma afetividade sadia e a uma abertura hospitaleira»1. Isto permitiu que Simone e o irmão se distinguissem, desde tenra idade, pelas suas capacidades intelectuais fora do comum.
Terminados os estudos no ensino secundário, Weil começa os seus estudos em filosofia na École NormaleSupérieure. Lá conhece Alain2, um professor que marcou toda uma geração de jovens filósofos — inclusive Simone —, especialmente no campo da filosofia política e na promoção da autonomia de pensamento e do espírito crítico. Forma-se em 1930 com uma dissertação sobre Descartes e depois começa a lecionar filosofia no Instituto Le Puy.
Enquanto professora no Instituto, Weil envolveu-se intensamente em movimentos sindicais, sacrificando horas de sono e refeições para apoiar os desempregados e os menos favorecidos, com a convicção inabalável de que a justiça social e a solidariedade eram deveres morais fundamentais. Porém, a sua dedicação à causa dos oprimidos ia além das ideias; Simone chegou a presidir diretamente greves, manifestações e reuniões em favor das classes operárias, algo que inclusive era mal visto na altura, já que muitos não compreendiam como é que «uma intelectual, professora de Filosofia, apoiasse reivindicações de desempregados»3.
Depois de muita polémica, Weil decide abandonar o ensino. Convencida de que só encarnando a realidade operária, poderá compreendê-la verdadeiramente, emprega-se na conhecida fábrica de automóveis Renault. Na fábrica, as duras condições laborais a que é submetida, afetam gravemente a sua saúde. Além do mais, já não restam dúvidas para Simone de que o trabalho industrial é verdadeiramente desumanizante, capaz de reduzir o ser humano à condição de escravo.
Após recuperar parcialmente a saúde, Simone Weil vive experiências marcantes que a aproximam da espiritualidade, como o sentimento de transcendência em Assis e o impacto da liturgia em Solesmes, culminando numa experiência mística em Portugal, onde reconhece o cristianismo como a religião dos oprimidos 4 ; esses episódios levam-na a abandonar a especulação filosófica abstrata e a adotar uma postura mais realista perante a vida.
Com a ocupação nazi de Paris em 1940, Simone Weil refugiou-se em Marselha, onde estabeleceu duas relações decisivas com o padre Joseph-Marie Perrin e com Gustave Thibon. O padre Perrin, dominicano quase cego, tornou-se um confidente espiritual fundamental para Weil, testemunhando a profundidade da sua procura pela verdade. Foi também Perrin quem a apresentou a Gustave Thibon, filósofo e agricultor católico, que a acolheu na sua propriedade para trabalhar nos campos. Durante este período, Weil confiou a Thibon vários dos seus cadernos de notas, repletos de reflexões espirituais e filosóficas.
Após a partida de Simone Weil para o exílio, quer Thibon quer Perrin desempenharam um papel central na preservação e divulgação do seu legado. Foi Joseph-Marie Perrin quem organizou e compilou os textos deixados por Weil, dando origem à obra Attente de Dieu (A Espera de Deus). Da mesma forma, Thibon reuniu e publicou, em 1947, o volume La Pesanteur et la Grâce (Gravidade e a Graça). Ambas as obras são um marco do pensamento místico da autora, e é graças a estes dois que hoje podemos conhecer este lado místico de Simone.
Enquanto isso, perseguida pela guerra, Simone fugiu com os pais para Casablanca e, posteriormente, para os Estados Unidos, mas sentiu-se deslocada no exílio e tentou regressar à Europa, conseguindo chegar a Inglaterra, embora sem conseguir voltar a Paris.
Determinada a colaborar com a resistência francesa, Simone enfrentou obstáculos institucionais e o agravamento do seu estado de saúde. Em abril de 1943, foi encontrada inconsciente devido a subnutrição, resultado da sua recusa em alimentar-se enquanto o povo francês sofresse fome sob a ocupação. Internada num sanatório, morreu a 24 de agosto de1943, aos 34 anos, sendo sepultada na secção católica de um cemitério local, apesar de nunca ter sido batizada.
A «ESPERA DE DEUS»
O conjunto de cartas e ensaios espirituais de Simone Weil, reunidos postumamente pelo seu amigo próximo, o padre dominicano Joseph-Marie Perrin, recebeu o título Attente de Dieu. Esta escolha, na minha opinião, parece refletir e expressar, com profundidade, a postura espiritual de Weil diante de um mundo devasso, completamente corrompido pelo mal e pelo sofrimento. Esse mal-estar existencial foi, sobretudo, causado pelas duas grandes guerras mundiais e pela crescente, embora opressiva, industrialização.
Se as guerras causaram morte e sofrimento gratuitos, as fábricas, por sua vez, exploraram e subjugaram os que tinham permanecido: a classe trabalhadora. Os operários, deste modo, eram vistos como um conjunto de peças dentro de um sistema meramente produtivo; completamente escravizados pela lógica do capitalismo e despojados da sua dignidade fundamental, chegando a viver como verdadeiros escravos do capital.
É neste contexto profundamente desumanizador que muitos dos grandes pensadores do século XX começam a levantar, de forma mais intensa e sistemática, a questão da própria existência de Deus. Surge uma rutura com séculos de submissão à transcendência. O homem emancipa-se das realidades espirituais e questiona Deus a partir dos seus próprios atributos tradicionais — a omnipotência e a omnipresença. Interroga-se: Se Deus tudo vê e tudo sabe, e se é amor e não deseja o mal das suas criaturas — sobretudo do ser humano, ápice da criação — então por que razão permite tanto sofrimento, tanta opressão, tanto mal? É legítimo perguntar se é possível uma experiência autêntica de Deus na realidade brutal da existência, de forma honesta?
Para alguns pensadores, a resposta é negativa. Albert Camus, por exemplo, considera que Deus não existe; a vida é absurda e a única honestidade possível é encarar esse absurdo sem ilusões religiosas. Jean-Paul Sartre vai mais longe, ao defender que Deus não existe, e que o homem está condenado a ser livre, sem nenhuma autoridade transcendente que lhe imponha sentido ou valores. Edmund Husserl, por sua vez, rejeita qualquer certeza metafísica.
Para Simone Weil, contudo, a experiência de Deus é possível, justamente a partir do sofrimento. Weil propõe uma espiritualidade de espera — uma atitude que não ignora o mal nem o nega, mas que, em vez disso, permanece atenta, silenciosa e disponível diante da realidade e de Deus. Vejamos de seguida, como é que estas categorias do pensamento weiliano são essenciais para nos ajudar a compreender essa espera.
Ponto de partida: infortúnio e a experiência do abandono
Para entender como Simone Weil vê o encontro com Deus no sofrimento, é importante perceber a distinção que fazentre dois tipos de dor: a dor comum e o infortúnio. A dor comum — luto, doença, contrariedades — é real, mas pode ser aliviada pelo pensamento ou superada com o tempo. Já o infortúnio é mais radical: «é uma coisa à parte, específica, irredutível. Ele é algo completamente diferente do que o simples sofrimento. Ele toma conta da alma e a fere, até seu âmago, com uma marca que só pertence a ele, a marca da escravidão».5
Neste sentido, o infortúnio representa uma forma extrema de sofrimento: desestrutura a vida inteira, atinge o corpo, a mente e a dignidade social. É, como diz Simone, «um desenraizamento da vida, um equivalente mais ou menos atenuado da morte»6. E em casos prolongados, pode tornar-se tão violento como «um condenado obrigado a olhar durante horas para a guilhotina que lhe vai cortar o pescoço»7.
Weil afirma que a desgraça «torna Deus ausente durante um tempo, mais ausente do que um morto, mais ausente do que a luz em uma masmorra completamente tenebrosa». 8 E, paradoxalmente, é nesse vazio que a alma pode tocar o divino. Weil identifica aí um privilégio espiritual: a participação na distância entre o Pai e o Filho, manifestada no grito de Jesus na cruz: «nossa miséria nos dá, seres humanos, o privilégio infinitamente precioso de tomar parte dessa distância colocada entre o Filho e o Pai».9
O sofrimento extremo não é, portanto, apenas um abismo, mas pode tornar-se um lugar de revelação, se a alma continuar fiel — mesmo sem sentir — e desejar amar no meio do vazio. É nesta fidelidade silenciosa que, um dia, a graça poderá descer. Mas para que isso aconteça, como a própria Weil conclui, será preciso discernimento, obediência e atenção.
Atitude: discernimento (obediência e atenção)
Para Simone Weil, a espera diante de Deus não é passiva nem mística, no sentido vago do termo. Trata-se de uma atitude concreta de discernimento, tecida em duas fibras fundamentais: a obediência e a atenção. Ambas exigem o esvaziamento interior da vontade própria e uma escuta radical da realidade tal como é, sem distorções, sem resistência.
A obediência, tal como Weil a entende, não é subserviência, mas aceitação ativa da verdade. É deixar-se moldar pelos acontecimentos, ainda que dolorosos, como expressão última da vontade de Deus. A obediência plena é aquela que se exerce na imobilidade, no silêncio e na dor, à semelhança de Cristo crucificado: «Nos atos de obediência a Deus, somos passivos […] há apenas expectativa, atenção, silêncio, imobilidade através do sofrimento e da alegria. A crucificação de Cristo é o modelo de todos os atos de obediência».10
Mas o verdadeiro motor desse discernimento é a atenção. Weil compreende a atenção como um gesto de puro amor, uma abertura radical que suspende o ego para acolher o real em toda a sua crueza. Estar atento é, na sua expressão mais autêntica, orar. Por isso afirma que a oração «é a orientação de toda a atenção da qual a alma é capaz, voltada para Deus»11. E insiste que essa atenção não é esforço voluntarista, mas desapego: «o pensamento deve estar vazio, na expectativa; ele nada deve buscar, mas deve estar pronto para receber na sua verdade nua o objeto que vai penetrá-lo».12
Essa atitude, profundamente kenótica, rompe a lógica da apropriação e instala a alma na pobreza espiritual — condição para todo verdadeiro encontro com o divino.
Consequência: diluição do eu e a graça
A obediência e a atenção desvelam-se, no fundo, como instrumentos de diluição do eu, e é esse esvaziamento interior que cria espaço para o dom da graça. Weil considera o “eu” — entendido como centro de vontades, desejos e auto justificações — como o principal obstáculo à verdade e ao amor. A sua destruição, paradoxalmente, é libertadora:«É por isso que todas as vezes em que realmente prestamos atenção destruímos o mal em nós».13
A alma que se despoja de si torna-se pura transparência, e é nesse espaço vazio que Deus pode descer. Não por mérito, mas por graça gratuita. Como Weil resume, com precisão quase aforística: «se olharmos o céu durante um longo tempo, Deus descerá e nos erguerá».14
A própria busca de Deus, mesmo quando infrutífera, é já lugar de visita. Weil confia que a graça virá — não por cálculo, mas pela fidelidade da espera: «Se houver desejo, se o objeto do desejo for realmente a luz, o desejo pela luz produzirá a luz»15.
Assim, a condição da alma não é a posse, mas o consentimento. A graça não se conquista — acolhe-se. E acolhe-se na medida em que o “eu” desaparece e a alma se torna dócil ao real. Deus não se impõe; é preciso fazer-lhe espaço. E esse espaço é o vazio de si.
CONCLUSÃO
Ao longo deste estudo, procurou-se responder à questão fundamental: como é que a experiência do sofrimento, longe de ser um obstáculo, se revela, para Simone Weil, como um autêntico lugar de encontro com Deus, abrindo possibilidades de sentido e esperança, mesmo em contextos de extrema adversidade? A análise da obra Attente de Dieu permitiu perceber que, para Weil, o sofrimento radical — o infortúnio — não é apenas uma experiência de vazio e abandono, mas pode tornar-se, paradoxalmente, um espaço privilegiado de abertura ao divino. É precisamente na ausência, no silêncio e na espera, que a alma se dispõe a acolher a graça, desde que se mantenha fiel, atenta e obediente à realidade, mesmo quando esta se apresenta sob a forma de dor extrema.
A recusa de Weil em oferecer respostas fáceis ou consolos superficiais diante do mal distingue-a de muitos outros pensadores do seu tempo. Em vez disso, propõe uma espiritualidade exigente, feita de atenção radical, esvaziamento do eu e consentimento à graça. A sua compreensão da obediência como aceitação ativa da verdade, e da atenção como gesto de amor puro, revela um caminho de maturidade espiritual que não nega o sofrimento, mas integra-o como possibilidade de transfiguração interior.
A pertinência da obra Attente de Dieu para o mundo contemporâneo é notável. Num tempo marcado por crises, guerras, desigualdades e experiências de abandono — tanto individuais como coletivas —, o pensamento weiliano oferece uma alternativa à tentação do desespero ou do cinismo. Weil desafia-nos a permanecer atentos e abertos, mesmo quando tudo parece perdido, e a reconhecer, no próprio vazio, a possibilidade de um sentido novo, não imposto, mas acolhido.
Além disso, a sua crítica à desumanização provocada pelo trabalho industrial e pela lógica do capital mantém-se atualíssima, interpelando-nos a repensar as nossas estruturas sociais e económicas à luz da dignidade humana. A sua insistência na solidariedade com os oprimidos e na recusa de qualquer forma de alienação ou indiferença é um apelo ético que continua a desafiar as consciências.
Em suma, Attente de Dieu não é apenas um testemunho de uma procura espiritual pessoal, mas uma proposta existencial e ética para todos os que se interrogam sobre o sentido da dor, da justiça e da esperança. A obra de Simone Weil permanece, assim, uma fonte inesgotável de inspiração para quem procura, no meio das trevas, uma luz que não seimpõe, mas que pode ser acolhida — na espera, no silêncio e na atenção.
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1 Maria Clara Bingemer, Simone Weil: Mística de Fronteira (São Paulo: Paulinas, 2016), p. 20
2 Alain é o pseudónimo de Émile Chartier (1868–1951), um importante filósofo, ensaísta, jornalista e professor francês. Alain exerceugrande influência sobre gerações de pensadores franceses, tendo sido professor de Simone Weil na École Normale Supérieure
3 Bingemer, 36
4 Simone Weil, Espera de Deus: Cartas escritas de 19 de janeiro a 26 de maio de 1942, trad. Karin Andrea de Guise, 2ª ed. (Petrópolis, RJ: Vozes, 2024), p.39
5 Weil, 87
6 Weil, 88
7 Weil, 88
8 Weil, 90
9 Weil, 96
10 Weil, 160
11 Weil, 75
12 Weil, 81
13 Weil, 81
14 Weil, 161
15 Weil, p. 77