A pós-pandemia exige uma nova cultura onde o “encontro é um imperativo categórico”, afirma professor de Teologia Sistemática

No segundo dia das V Jornadas de Teologia do Seminário os padres Pedro Lima e Hélder Fonseca Mendes abordaram as interpelações que a pandemia deixou à sociedade e à Igreja

A pandemia fechou as igrejas mas a Igreja não está fechada e hoje, mais do que nunca, é chamada a ser uma presença catalisadora do encontro, “esperta em humanidade”, e ciente de que novos tempos implicam novos desafios, que impõem um novo olhar do homem consigo mesmo, com o ambiente, com a sociedade e com Deus, como defende a perspetiva holistica, constante dos documentos deste pontificado.

No segundo dia das jornadas de Teologia, promovidas pelo Seminário de Angra sobre os novos desafios da Igreja no pós-pandemia os dois sacerdotes oradores- padre Pedro Lima, professor de Teologia Sistemática e cónego Hélder Fonseca Mendes, professor de Teologia Pastoral e Administrador Diocesano-  convergiram numa ideia base: os problemas evidenciados pela pandemia constituem uma oportunidade para o homem se reencontrar consigo, com o seu próximo e, sobretudo, com Deus.

“Se há questão revelada por esta pandemia é que não estamos sozinhos, quer no perigo quer na salvação. Podemos não ter grandes multidões, mas em pequenos grupos caminhamos juntos e partilhamos a mesma fé” afirmou o cónego Hélder Fonseca Mendes já em contexto de diálogo com a assembleia a propósito de uma das mais evidentes consequências da pandemia e que se traduz em igrejas vazias, com pouca afluência de fieis

“O medo teve um impacto muito gravoso na vida comunitária. Aliás, assistiu-se a um enfraquecimento do valor comunitário e a uma sobrevalorização da vontade do indivíduo.” Sobretudo no que toca à religião, com consequências ao nível da prática dominical que caiu a pique em muitas paróquias e será de difícil recuperação.

“A atitude de fundo que esta pandemia veio demonstrar é a do sujeito por si mesmo e uma clara desvalorização das estruturas comunitárias” refere o cónego Hélder Fonseca Mendes lembrando que apesar de diagnosticado não existem receitas pensadas e pode levar algum tempo a reconfigurar-se, ainda que em dimensão e características diferentes.

“Estamos em tempos, como se tivesse ocorrido um grande sismo, com uma de destruição que abalou profundamente a sociedade e Igreja. Agora é preciso reconstituir, sobre os três pilares perenes que ficam de pé: a verdade, a misericórdia e a justiça” afirmou o sacerdote numa intervenção mais demorada, que partiu de uma citação do livro do Eclesiastes.

“A pandemia não nos deixa melhor do que estávamos” e na Igreja, “parece também não ficarmos melhor do que estávamos, embora a fé, a esperança e caridade sejam recursos inesgotáveis”.

“Queremos progredir e desenvolver sempre mais, mas tenhamos em conta que os crescimentos espiritual e moral não seguem os mesmos trâmites do crescimento material ou das estruturas, mesmo eclesiais” sublinhou.

A partir de alguns documentos do Magistério, do Papa Bento XVI, do Papa Francisco, Da Academia Pontifícia da Vida ou do próprio Evangelho, o sacerdote recordou que a relação do cuidado “é um paradigma da condição humana”; que a pandemia testa a fé evangélica e valoriza o poder da oração intercessora. E, prosseguiu; “Sobre a velhice, é inegável que a pandemia reforçou a consciência de que a riqueza dos anos é um tesouro a ser valorizado e protegido; ninguém queria a eutanásia durante a pandemia. Os mais velhos não devem ser separados dos mais novos, por quanto os podem enriquecer, e devem ser apoiados pelo Estado sem a obrigação de serem institucionalizados”, disse ainda retomando uma questão recorrente nas suas intervenções.

“A pandemia traz ao de cima o melhor e o pior. Do melhor: o heroísmo, a generosidade, entrega, empatia e caridade inesperadas em tanta gente simples. Do pior, a falta de recursos materiais, quando se confunde estado de bem-estar com lugares de distracção, ócio, supérfluo, vulgar, luxo; espectáculo, caprichos e exageros no mundo do desporto e da política, que leva a perguntar, afinal de que «bem-estar» precisamos”.

Ainda assim,` contas feitas´, “Os tempos de crise são favoráveis à vida espiritual. Abre-se a rota do caminho interior, suscitando energias singulares para enfrentar o ritmo sombrio das dificuldades e recuperar o tecido da alegria” adiantou, por outro lado.

“É uma pandemia que nos ajuda a entender a nossa limitação e precariedade, sem qualquer posição que defenda arrogâncias e auto-suficiências. Precisamos modularmente uns dos outros” conclui o antigo Vigário Geral diocesano.

“Estamos num momento kairológico, extraordinário, que pode possibilitar um campo novo de reflexão para as religiões, igrejas e espiritualidades. É um tempo que provoca humildade”, disse ainda o cónego Hélder Fonseca Mendes sugerindo pistas para um itinerário de reconciliação entre a humanidade inteira.

“A crise em si mesma não determina mudança”, alertou.

Realidades como “ povo de Deus”, “baptismo”, “confirmação”, “família”, “comunhão” ou “cuidado pela Casa Comum” devem ganhar algum relevo e ser vividas de forma diferente, quiçá em comunidades mais pequenas mas mais comprometidas.

“A Igreja, neste tempo oportuno,  terá de dialogar com outros areópagos, em caminho sinodal” avança, por seu lado, o padre Pedro Lima ao reconhecer que a pandemia veio remeter a vivência da fé comunitária para um lugar secundário em relaçãoà ciência que se tornou numa espécie de “nova religião”, com uma estrutura dogmática que é a tecnologia e os médicos os novos sacerdotes, mas esta nova religião “não favorece a salvação ou a cura eterna”.

A partir do esquema de análise da Acção Católica- ver, julgar e agir- , o sacerdote lembrou que para sairmos desta crise, agravada agora por um cenário de guerra, “temos de ser realistas” e tirar partido dos “desejos” que a pandemia evidenciou.

“A pandemia possibilitou a valorização de algumas realidades: a família e o jejum do pão eucarístico”, concluiu.

Amanhã, quinta-feira, com moderação de Ana Carina Ferreira, as conferências serão proferidas por dois leigos: Piedade Lalanda, socióloga e diretora do Serviço Diocesano da Pastoral Social, falará sobre “os laços sociais no pós pandemia” e Ricardo Brasil sobre “A saúde mental pelos caminhos da pandemia”.

 

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