A esperança é um elemento identitário de todos os crentes, diz o Pe. José Júlio Rocha

Professor de Teologia Moral do Seminário encerra II Jornadas de Teologia com conferência “Fé e Literatura: três ensaios sobre a esperança”

O mundo “perdeu toda a sua capacidade redentora” ainda assim a esperança “não morre” e é um dos elementos identitários de todos os crentes, afirmou esta noite o Pe. José Julio Rocha que encerrou as II Jornadas de Teologia promovidas pelo Seminário de Angra e que permitiram durante três dias refletir sore “Deus na pena dos Homens- Diálogo entre Teologia e Literatura”.

“A fé não nos traz a paz, mas a luta. No entanto, a esperança não morre” disse o professor de Teologia Moral sublinhando que “atirar a esperança para o lado de lá do campo do jogo, para o Outro, abre as portas à transcendência”.

O Teólogo, que é um dos poucos investigadores em Portugal a estudar o encontro entre a Teologia e a Literatura, onde ainda há “um enorme espaço por desbravar”, partiu da análise de três obras fundamentais do pensamento que exploram a natureza humana em situações limite: “A Lenda do Grande Inquisidor” inserido no romance “Os Irmãos Karamazov”, de Fiódor Dostoiévsky; “A Metamorfose” de Franz Kafka e “O Velho e o Mar”  de Ernest Hemingway.

O professor de Teologia Moral lembrou que o sofrimento é “muitas vezes o caminho para a esperança”, na perspetiva de que é através do sofrimento que “partimos em busca do outro”.

Em cada uma das três obras, Júlio Rocha encontra um traço comum: em todas elas permanece o sentido da decisão humana, da liberdade individual, que se manifesta mesmo nas circunstâncias mais adversas.

O reduto da liberdade de cada um é, para o orador, a marca da individualidade divina que cada pessoa transporta.

Honra, dignidade, paixão são também traços que o orador aponta nestas  três grandes obras da literatura e que para um cristão devem ter um valor especial num tempo de crise em que percorrer o caminho do desespero é o mais fácil, como está bem patente na Metamorfose.

“A incomparável tragicidade desta história não está na metamorfose em si, mas no facto que o mundo perdeu toda a sua capacidade redentora. E que a imagem do inseto monstruoso não é senão o espelho no qual a humanidade vê, refletido, sem o compreender ou sem querer compreendê-lo, o seu verdadeiro rosto”, salienta o sacerdote.”

“O atirar da esperança para o lado de lá do campo de jogo, para o Outro, abre as portas à transcendência, que muitas vezes não passa de uma transcendência paradoxalmente imanente, mas que, com a morte, é transportada para um infinito desconhecido. Sem uma resposta que seja a não ser o silêncio. Um silêncio que, em última análise, se confunde com a impossibilidade de comunicar” diz ainda.

As três obras, de leitura indispensável, propõem situações em que o homem é testado até ao seu limite, embora em contextos absolutamente diversos.

No caso da Lenda do Inquisidor, de Dostoiévski, que relata uma nova descida de Jesus à terra durante o período da inquisição espanhola, o inquisidor “acusa” Deus de conferir aos seres humanos a liberdade, mesmo sabendo que eles a trocam por garantias. Neste romance, o silêncio divino não conforta a razão humana e sua Verdade não passa por nenhum constrangimento lógico, mas por um ato de Amor livre, que gira em torno de uma relação muito conturbada entre pai e filho e que é relatada na terceira pessoa.

Já na Metamorfose, um dos livros mais lidos e comentados de Franz KafKa, é descrito um pesadelo que se torna realidade. Gregor Samsa, um caixeiro-viajante- acorda metamorfoseado num enorme e gigante inseto, o que naturalmente provoca a incompreensão dos que lhe são mais próximos.

No Velho e o Mar, a última obra que Ernest Hemingway publicou em vida, relata-se a luta entre um velho pescador, conhecido localmente pelo seu azar extremo, e um peixe de grande dimensão. Trata-se de uma ode à solidão e à luta pela sobrevivência onde, transversalmente, são abordados temas como a honra, a compaixão e a dignidade.

Júlio Rocha partindo de um personalismo cristão, aberto ao transcendente, lembra que qualquer uma destas formas de sofrimento é uma espécie de alavanca para um novo caminho que “deve e tem” de ser percorrido porque é o único que permite o encontro do homem com a sua história, redescobrindo a vocação humana na sua ação prática para compreender e apreender a sua verdadeira dimensão.

“Foram escolhidos não apenas por serem contos pequenos e densos mas sobretudo pela sua dimensão transcendental no panorama universal da literatura e do pensamento ocidentais. Ao mergulhar nestas obras, deparamos com formas diferentes de os narradores lidarem com a esperança enquanto dimensão humana e cristã da existência”, justificou o sacerdote para quem a literatura e a Teologia têm uma relação de reciprocidade.

“O Século XX assinala uma notável aproximação entre a linguagem da Teologia e a da cultura nas suas várias dimensões” com a Literatura a interpelar a Teologia sistematicamente, sobretudo com a viragem da narrativa no século XX.

“A Literatura assume o papel de porta-voz da crise do homem moderno e interpela a Teologia, convidando-a a sair do sistema fechado e a abrir-se a uma nova linguagem”, concluiu o Pe. José Júlio Rocha.

Antes da conferência “Fé e Literatura: três ensaios sobre a esperança” já a professora da Universidade dos Açores Rosa Goulart tinha proferido uma comunicação sobre a presença de Deus na obra de Virgílio Ferreira : “Virgílio Ferreira: o Deus que lhe morreu”.

Para Rosa Goulart as palavras sobre Deus, na obra do autor “não são signos vazios”. Aliás, uma das características transversais a toda a obra de Virgílio Ferreira, refere, é a busca da ordem universal e esta ordem só pode ser do domínio do transcendente. Por isso, se torna “difícil encontrar esse Deus na obra de Virgílio Ferreira”.

Ainda de acordo com Rosa Goulart são “inúmeras as citações bíblicas nos narradores de Virgílio Ferreira” que através do seu olhar “esmagam tudo à sua volta”.

“Se é certo que o problema de Deus sempre o inquietou trata-se de uma inquietação compensada pelo muito que lhe rendeu em reflexão filosófica. O precário orgulho da morte de Deus em favor da supremacia do homem sempre assentou numa aporia: Deus como transcendência far-lhe –ia muita falta pelo menos encarado irresoluto”, disse a investigadora.

“Morto Deus haveria de lhe arranjar um substituto” o que constituiu um problema e uma quase obsessão dado que Deus era “uma interpretação para a vida”.

Durante três dias padres, teólogos, professores universitários,  especialistas em literatura e leigos em geral participaram nas jornadas de Teologia promovidas numa parceria entre o Seminário de Angra e a Academia São Tomás de Aquino.

As intervenções aqui proferidas irão integrar o segundo volume da revista Fórum Teológico XXI.

(Com André Furtado e Tatiana Ourique) Igreja Açores

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