Um título com duplo sentido e que certamente fará suscitar ambos os sentidos nas mais diversas leituras e formas de o interpretar.
Pois bem, sede e sede Dele.
Aos que leram sede como auto necessidade, procura ou desejo Dele, peço que a vejam também como o verbo ser, no imperativo: “Sede vós”.
Convido-vos a uma pequena reflexão subordinada ao tema “vida espiritual” – baseando-me nas reflexões proferias pelo Pe. Agostinho Tavares, no retiro quaresmal do Seminário de Angra – tendo sempre presente o vocábulo “sede” nestes dois sentidos.
Estamos no tempo da Quarema, que a Igreja apresenta assim: “No Tempo da Quaresma, os fiéis, escutando mais frequentemente a palavra de Deus, dedicando-se à oração, fazendo penitência, recordando o seu Batismo e seguindo a Cristo no caminho da cruz, preparam-se para celebrar dignamente a Páscoa.”
Ora, aliada a estas dimensões, está sempre intrinsecamente ligada a vida espiritual do homem. Por essa razão, e num sentido de partilha, deixo-vos algumas considerações levantadas no âmbito do retiro e que me parecem de todo pertinentes para vos ajudar na vivência de uma espiritualidade autêntica e verdadeira.
Todo e qualquer homem tem uma dimensão espiritual, independentemente das suas crenças ou ideologias, mas esta ideia de espiritualidade – o mesmo acontece com o vocábulo “vocação” – está demasiado associada à religiosidade e às práticas de fé inerentes a essa determinada religião.
A psicologia define espiritualidade como dimensão da pessoa humana que traduz, segundo diversas religiões, confissões religiosas e sistemas filosóficos e culturais, o modo de viver característico de uma pessoa que busca alcançar a plenitude da sua vida, recorrendo ou não à existência de algo transcendente.
Todavia, aquilo que nos é pedido é que, para além de sermos seres espirituais por natureza, sejamos seres com uma vida espiritual. Parece ser algo muito abstrato, mas vamos ver que acaba por se realizar em algo muito concreto: numa ligação de amor permanente.
Em primeiro lugar, a vida espiritual entra no homem quase de forma natural, pela sede que temos de sentido para a vida e de ligação com algo superior a nós (transcendente). É o próprio Jesus que nos convida a matar a sede junto Dele: “Se alguém tem sede, que venha a mim e beba.” (Jo 7, 37) e é através do seu projeto de salvação universal que promete matar a sede a todos os homens.
Aquilo que acontece muitas vezes é que não sabemos o que é esta sede de que fala Jesus, ou não sabemos quais as sedes que nos assolam no dia a dia. Todos nós queremos ser felizes, dizemo-lo todos. Mas então o que é a felicidade? Ou que é que me vai fazer ser feliz? E aos outros? Pois bem, a questão da sede é semelhante: todos temos sede de algo, mas não sabemos bem do quê! A primeira condição para percebermos quais são as nossas sedes é o fazer silêncio. Quem não faz silêncio não escuta, por isso devemos parar – algo tão difícil nos dias de hoje – e escutar Jesus, percebendo junto Dele quais são as nossas sedes.
O grande problema do homem, e principalmente da sociedade atual, é que a sua sede é insaciável, ou seja, nunca deixa de existir. Teimamos incessantemente que nunca nada está bom, queremos sempre mais… Já Jean Paul Sartre dizia que “o ser Humano é um desejo inútil.”
Pois bem, a grande sede que há em nós é o desejo de infinito que Deus nos colocou, criando-nos à Sua imagem e semelhança. É a necessidade de nos ligarmos a Ele, pois só Deus pode saciar o coração do homem. “Só Deus é e basta”, dizia Santa Teresa de Ávila.
O primeiro passo da nossa vida espiritual é darmos conta dessa sede em nós mesmos. Na constituição Gaudium et Spes, vemos que a razão mais sublime do homem consiste na sua vocação de união com Deus. Sem Deus, seríamos como um rio sem nascente, uma árvore sem raízes. “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5).
Fruto da nossa insatisfação e do não reconhecimento desta sede em nós, acabamos por procurar colmatá-la buscando coisas fora de Deus mas que só Ele pode dar. Tentamos disfarçar o sentido das coisas para não termos de pensar nelas, como, por exemplo, o sentido da vida ou da morte. Colocamos tanto compromisso na nossa agenda que acabamos por não ter tempo de pensar em coisas banais, quanto mais em questões complexas e do foro interior.
Por outro lado, há que ver a vida espiritual não como algo complicado, mas como algo simples, sincero, verdadeiro, autêntico e, sobretudo, apaixonante, que nos leva a um processo de conversão que consiste em colocar em prática, junto com os irmãos, toda essa vida espiritual que acaba a fluir em nós. Não se trata pois das coisas do espírito, ou a prática religiosa, ou os momentos de oração, mas sim um modo próprio de viver a vida segundo o Espírito de Deus – um estado em que damos valor àquilo que os homens do mundo não dão.
Depois de reconhecer a sede desta vida segundo o Espírito, é preciso também deixar-se conduzir por Aquele que é o motor de toda a nossa vida: o Espírito Santo. O Espírito Santo é a alma e o animador da espiritualidade cristã. É necessário confiar-se à sua ação, que vem do coração.
A este deixar-se conduzir, chamamos docilidade ao Espírito; esta é uma das atitudes mais urgentes na nossa vida espiritual: não bloquear a Graça do Espírito, de não o esconder por meio das aparências ou futilidades do dia a dia. Muitas vezes, aquilo que é mais simples é o que acaba por tocar no coração das pessoas. O Espírito é simples! Não o compliquemos!
Para termos uma vida segundo o Espírito, embora não seja só, são necessários, pelo menos, três momentos: a oração, a participação nos sacramentos e a Lectio Divina. Só para termos uma ideia da importância da oração, diria que “a oração é para a vida espiritual aquilo que respirar é para a vida do corpo, ou seja, essencial”.
A nível prático, se nos sentirmos com uma vida espiritual em tom de dever (ir à Missa só porque devo ir, por exemplo) é sinal de que tenho uma experiência ainda pouco madura e que não me permite associar a Eucaristia como o alimento da minha vida espiritual, mas sim como um hábito igual a todos os outros.
Por outro lado, quando temos a consciência da gratuidade do amor de Deus, acabamos por agir de forma a agradar-Lhe e não a agradar aos outros ou aos nossos superiores. É precisamente esta noção que nos falta. É a noção de que a nossa vida de fé não passa por agradar às pessoas ou àqueles que são responsáveis por nós, mas sim procurar viver uma ligação de amor com Cristo.
Claro que, para haver esta relação íntima de amor, é preciso que haja confiança. Só sigo aqueles em quem confio. Quando somos crianças, seguimos os passos dos nossos pais porque é neles em quem confiamos e são eles as nossas referências. Pois bem, na vida espiritual, é exatamente a mesma coisa: para seguir é preciso confiar, e para confiar é preciso amar. Saber amá-Lo e ter a consciência de que Ele nos ama é vida espiritual.
Um coração tocado por este amor nunca tem a oração como algo rotineiro ou monótono. Quando estamos a comer, não vemos as refeições como algo maçador e rotineiro, acabando por ser maçador ter de se fazer a mesma coisa todos os dias, mas sim como uma necessidade básica para poder viver e suportar o corpo. Ora, é precisamente esta necessidade que torna a oração tão especial.
Como em tudo, também a vida espiritual tem alguns erros que podemos cometer, como viver a vida de fé movidos pelo medo, ou entendê-la como uma mera obrigação, ou pensar que é um favor que fazemos a Deus. No amor não há temor; em Deus aquilo que existe é uma máxima reverência e profundo respeito, pois se estou à procura de uma resposta de amor, como poderá ela ser por obrigação ou movida pelo medo?
“O temor de Deus é estar de joelhos, no colo Dele”. Pe. Agostinho Tavares
Outro erro muito frequente é quando começamos a negociar com Deus. “Faço-Te isto se me deres isto”, “Se fizeres isto à minha família, ofereço-Te esta promessa”. Amigos, se há favor, é da parte de Deus. Nós nunca conseguiremos acrescentar nada a Deus, não temos nada que lhe possamos dar.
S. Lucas vê a Igreja como um conjunto de pessoas cheias do Espírito Santo. Só conseguiremos ser verdadeiramente Igreja quando fizermos alcançar esta vida espiritual, tendo sempre a consciência de que vida espiritual nunca terá uma meta ou um final neste mundo, por se tratar de uma caminhada constante de procura e configuração com Cristo.
“Deus ama-te demasiado para te deixar como estás.” Tenhamos sempre presente este pensamento e deixemos conduzir pelo Espírito de Deus, matando a nossa sede Dele e assim, de forma sincera e dócil, sendo Dele.
Santa Teresinha do Menino Jesus dizia. “Quero ir para o céu de mãos vazias, pois só assim poderei receber mais”.
Gonçalo Brum
1.º Ano