Seja sempre bendita, louvada a sagrada Paixão, Morte
e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo…
Parece certo que nenhum micaelense se sente indiferente às romarias na ilha de São Miguel.
Em 2022, completam-se cinco séculos de romarias. Esta vivência cristã faz parte do sangue corisco. Não há micaelense que não tenha um familiar romeiro ou que já tenha feito a experiência da romaria.
É, sem dúvida, um fenómeno de fé de um povo, que ultrapassou o campo da religiosidade e marca a cultura, o ritmo e até a economia da ilha.
Há quem diga que a ilha pára neste tempo da Quaresma e não me parece exagerada tal afirmação. São mais de 2500 homens, de 54 paróquias, como também da diáspora, que suspendem o quotidiano das lidas laborais e académicas e partem estrada fora. Isto tudo envolve milhares de pessoas, desde as famílias dos romeiros, as pessoas que acorrem a pedir orações, as famílias e as comunidades que acolhem na pernoita.
O romeiro tem uma imagem. É alguém visível e distinguível, física e espiritualmente. As alfaias do romeiro são o que de mais puro, mais simples e essencial existe, para quem se aventura numa viagem feita a três dimensões: Cristo, o romeiro e os irmãos. De terço e bordão nas mãos, lenço e xaile aos ombros, o romeiro caminha confiante na Providência divina.
Deixem-me que vos fale de alguém que talvez conheçam… ou então apresento-vos o mestre João Manuel Sousa. Conhecido de muitos irmãos romeiros de toda a ilha de São Miguel, foi durante muitos anos o responsável do rancho da minha paróquia (Ponta Garça). Infelizmente, eu nunca fui de romeiro com ele. Mas o meu pai e os meus tios, (e provavelmente o meu avô) tiveram a oportunidade de caminhar com ele. Devido a um problema de saúde no início da década de 90, o mestre João Manuel ficou fisicamente incapaz de retomar as romarias, que ele tanto amava. Há poucas semanas, nasceu para o céu. Aos 82 anos, realizou a última romaria, para junto do Pai.
Mestre João Manuel, que nem sei se tinha a 4.ª classe, era também mestre na teologia do homem simples, possuído de uma grande fé, aquela fé que não coloca questões nem usa duvidar. O amor é a prova da fé, e o Mestre João Manuel foi alguém que muito O amou.
A transmissão de histórias e de estórias, entre gerações, é qualquer coisa de único e fascinante nas romarias. É um sentimento nostálgico que junta passados ao nosso presente, numa cadeia interminável. São heranças que nos fazem perceber que somos tão iguais nesta intemporalidade. E eu, com 19 romarias realizadas, já dou por mim a contar aos mais novos aquilo que ouvi e até mesmo um pouco das minhas experiências como romeiro. Todo o romeiro tem a sua própria história.
Ouvi dos mais velhos que o Mestre João Manuel dizia que “o romeiro é o homem da surpresa”. E a surpresa está relacionada com a novidade e com a Providência. A novidade de todo um caminho diante de nós, o novo irmão que caminha a nosso lado, a incerteza do tempo, o desconhecimento de quem nos vai acolher. Toda esta novidade é interação da Providência. Tudo é dom e graça de Deus.
Até há bem poucos anos, eram conhecidas como Romarias de São Miguel. Mas considero que a nova nomenclatura, isto é, Romarias Quaresmais, dá qualidade ao sentido do que realmente são e à sua quantidade, porque reúnem no mesmo espírito todos os homens que, quer na ilha de São Miguel, quer na ilha Terceira, como também na ilha Graciosa, peregrinam como um só povo, ao longo deste santo tempo da Quaresma, favorável ao sacrifício e propício à conversão.
A romaria é a experiência do deserto. São os filhos de uma diocese que, nos “desertos” das suas ilhas, caminham, tal como o Povo de Deus, rumo à Terra Prometida. Qual é a nossa Terra Prometida?
Os açorianos estão familiarizados com peregrinações rumo a santuários e a templos com forte expressão de fé e de culto: as peregrinações ao Senhor Santo Cristo dos Milagres, em São Miguel e em São Jorge, as peregrinações a Nossa Senhora dos Milagres, na Serreta, as peregrinações ao Bom Jesus, em São Mateus do Pico, as peregrinações à Senhora do Pranto – no nordeste de São Miguel, entre muitas outras. São muitos os fiéis que saem das suas casas, sozinhos ou em grupo, finalizando a peregrinação nos “lugares santos” da sua devoção.
Mas as romarias quaresmais têm uma particularidade interessante: o ponto de partida é o mesmo que o ponto de chegada, ou seja, a igreja paroquial e a comunidade cristã. Saímos da nossa comunidade e regressamos à nossa comunidade.
É o mesmo que dizer que a Terra Prometida é onde cada um vive e é chamado à comunhão com Deus e com todos os irmãos, perpetuando na vida do dia a dia a emoção do romeiro caminhante. Perante um vasto grupo de homens, com experiências de vida e de fé diferentes, as romarias são uma oportunidade para a Igreja, na medida em que são um “espaço” de evangelização. A Igreja, pescadora de corações livres e generosos, encontra nas romarias um mar de homens disponíveis a abraçar as redes e a deixarem-se apanhar por Cristo.
Nos meus primeiros anos de romaria, o meu querido irmão Sebastião, que Deus o tenha, na altura com mais de 70 anos de idade, testemunhava aos mais novos com muita emoção: “a romaria é uma coisa séria!”. De facto, as romarias são uma coisa séria e merecem toda a nossa seriedade. Por isso, as romarias são uma oportunidade para a Igreja (párocos, responsáveis pastorais e comunidade) acolher os irmãos que vivem à margem, ou como diz o Papa Francisco, na “periferia”.
Entristece-me quando ouço de pessoas com [alguma] autoridade na Igreja dizerem “muitos só são romeiros durante aquela semana e depois nunca mais aparecem”. Não deixa de ser verdade que há muitos que são assim. Mas este não pode ser o argumento para a imobilização pastoral e evangélica. Após uma caminhada fisicamente desgastante, o verdadeiro acolhimento e acompanhamento pode levar ao compromisso. Os romeiros são da Igreja!
Se soubessem o valor e a graça que emana de uma romaria… Só quem vive e ama entende… e sofre.
É uma oportunidade para refletir: Igreja/Comunidade, o que tens a oferecer aos romeiros ausentes da vida paroquial? Como os tens cativado? O que falha e porquê?
“O Senhor faz cantar os redimidos um hino de vitória”, diz-nos Santo Atanásio. Que o hino do romeiro seja sempre a conversão e o abandono nos braços de Deus, que é Pai, Filho e Espírito Santo.
A todos, um santo tempo quaresmal, rumo à nossa ressurreição com Cristo Pascal.
… seja para sempre louvado com Sua e nossa Mãe, Maria Santíssima.
Jorge P Sousa
4.º Ano
Angra do Heroísmo, 13/03/2019
Fotos: Rui Oliveira https://www.jn.pt/infos//Embeds/Romeiros/romeiros.html