«Se uma função f é contínua num intervalo fechado a,b, e k é um número real compreendido entre f(a) e f(b), então existe pelo menos um valor real c, pertencente ao intervalo, tal que f(c) = k»
Este teorema é fundamental na matemática porque permite verificar a existência de soluções sem as calcular explicitamente, sendo uma ferramenta muito útil para provar que certas equações têm soluções em intervalos específicos. Pelo menos é o que dizia o manual. Convinha decorar bem este corolário, até porque eram pontos dados no exame — eram daquelas perguntas que saiam sempre. Os logaritmos, os limites e a restante álgebra… por mais que tivesse perdido tardes na biblioteca a resolver exercícios com a malta, e noites inteiras — por vezes agrestes por conta dos gélidos ares da cova — nunca me saíam a cem por cento. Já passava da meia noite, e tinha de descansar para o derradeiro dia. Acabei de encher a memória da calculadora com números e fórmulas na esperança de que me pudessem obrar um milagre, fechei pela última vez o Novo Espaço — assim se chamava o livro — e caí exausto na cama.
A hiponatremia é uma condição médica causada por deficiência de sódio no organismo. A falta deste sal no corpo é sobretudo prejudicial para o cérebro, uma vez que desregula a concentração de água nas células, acabando por levá-lo a inchar e, consequentemente, a comprometer as funções neurológicas. Os principais sintomas deste quadro clínico são severas dores de cabeça e confusão mental — daquelas que levam alguém debilitado a adquirir uma força e um vigor físicos de tempos de juventude, uma energia que não consegue acompanhar o corpo gasto pelos anos de sacrifício em prol do sustento de sete filhos (e outros que acabariam por falecer).
A minha avó sofria, de tempos em tempos, desta estranha condição que a transformava numa estranha dentro da própria casa. Eram episódios que chegavam, para mim, como tempestades súbitas. O sal que lhe faltava no sangue roubava-lhe a lucidez, e ela, que sempre fora o porto seguro da família, tornava-se numa criança perdida. Naqueles momentos não sabia como reagir. Entrava em pânico, refugiava-me, fugia da fragilidade. Não consentia ver desmoronar-se aquela que sempre considerei invencível.
Naquele dia deitei-me exausto, mas longe de estar tranquilo. A minha avó estava há cerca de um mês no hospital. Normalmente quando isto lhe acontecia, bastava-lhe uma semana para recuperar — pelo menos para voltar a casa. Mas dessa vez tinha sido diferente. Foram inúteis os inúmeros esforços para me colocar num carro para poder ir vê-la ao hospital. Diziam que estranhava a minha ausência, que perguntava por mim, que se preocupava comigo, mesmo longe e presa há vários dias numa cama de hospital. Mas a cobardia era mais forte que o amor e a saudade.
Talvez fosse o medo de a ver ainda mais frágil, ligada a tubos e máquinas, reduzida a uma sombra de mulher. Ou talvez fosse o receio de me despedir sem saber que era uma despedida — essas palavras não ditas que ficam para sempre suspensas no ar, como orações interrompidas. A minha juventude, que se julgava corajosa diante dos teoremas e das grandes questões filosóficas, revelava-se pequena e medrosa perante o sofrimento real, tangível, daqueles que mais amava.
Ficava em casa; inventava desculpas, mergulhado nos livros como quem se esconde numa fortaleza de papel. Cada página que virava era uma tentativa de silenciar a voz que me chamava para junto dela; cada exercício que resolvia era uma forma de adiar o confronto com a minha própria impotência. No fundo, sabia que estava a falhar no momento em que ela mais precisava de mim, mas não conseguia quebrar as correntes invisíveis que me prendiam.
A culpa crescia dentro de mim como uma sombra ao entardecer: lenta, mas implacável, tingindo de amargura cada hora que passava sem a visitar. Por isso, antes de adormecer por completo naquele dia, prometi a mim mesmo: “Depois do exame — o último — vais ao hospital”.
Uns gemidos indecifráveis acordam-me no dia seguinte. Ainda atordoado do sono, olho para o relógio e levanto-me como quem teme pela vida. O autocarro passava dali a uns quinze minutos — o raio do despertador, não sei porquê, nesse dia não disparou. Visto uma roupa que tinha à mão, agarro na mochila, certifico-me que tinha comigo o cartão de cidadão e… novamente, os mesmos murmúrios inquietantes retornam. Eram vozes que pareciam vir de todos os lados e de lado nenhum, ecos de sofrimento que se misturavam com o barulho matinal da casa. E nesse momento o meu coração gelou.
Desço as escadas e deparo-me com a minha tia no desespero. Com medo da verdade, escapei sorrateiramente — mas com a sensação de que o mundo tinha desabado. Havia uma gravidade no ar que cortava como lâmina, uma densidade que fazia cada passo em direção à porta parecer uma traição. Mas eu fugia, como sempre fugi, escolhendo viver na ilusão da normalidade em vez de enfrentar a realidade que se desmoronava.
Ao chegar à paragem do autocarro, encontro a minha prima, que tal como eu, se aprontara de manhã, mas para ir trabalhar. Ei-la à minha frente, destroçada, completamente derrotada, como se aquele fosse o pior dia da vida dela. Os seus olhos, vermelhos e inchados, diziam tudo o que eu não queria ouvir. Não tive outro remédio senão aproximar-me, com medo. E no meio do balbucio, ouço: “O estado da vavó piorou muito durante a noite; teve de ser transferida para os cuidados intensivos”.
O mundo parou. O autocarro continuava a aproximar-se ao longe, indiferente à tragédia que se desenrolava na paragem, mas para mim o tempo tinha se cristalizado naquele momento. Lembro-me de termos ido a viagem toda a chorar, abraçados, indiferentes aos olhares dos passageiros, que tentavam compreender aquela dor crua e desprotegida.
Mais tarde, naquele dia, logo após sair do exame, senti-me como um fantasma a vaguear entre duas realidades. O papel ainda guardava as marcas do meu esforço — equações resolvidas, gráficos traçados, teoremas aplicados com a precisão mecânica de quem estudara durante anos. Mas tudo aquilo parecia ter acontecido a outra pessoa, numa vida anterior, antes de o mundo se ter partido em dois naquela paragem de autocarro.
Caminhei para o jardim em frente à secundária com a sensação estranha de ter cumprido um ritual vazio. As duas horas e meia de exame passaram num borrão de números e fórmulas — como se o meu corpo estivesse presente, mas a alma já tivesse partido para o hospital. Cada função que calculei, cada limite que resolvi, era acompanhado por uma oração silenciosa, um pedido desesperado para que ainda houvesse tempo.
O telemóvel pesava-me no bolso como uma bomba por detonar. Não tinha coragem de ligar, não tinha força para enfrentar o que poderia ouvir do outro lado da linha. Preferia viver naquele limbo entre a esperança e o desespero, naqueles minutos de ignorância que me protegiam da verdade. Mas sabia que, tarde ou cedo, teria de enfrentar o que me esperava. Os teoremas de Bolzano que explicara tão bem no exame pareciam ironicamente cruéis — algumas verdades são inevitáveis, alguns pontos de passagem são obrigatórios, mesmo quando preferíamos saltá-los.
Subitamente a minha prima surge com o marido, de carro, nesse mesmo jardim. Não precisaram de dizer uma única palavra. O rosto dela, transfigurado pela dor mais absoluta, o silêncio dele, pesado como chumbo, o carro parado em segunda fila como se nada mais importasse no mundo — tudo isso gritava a verdade que o meu coração já sabia, mas que ainda assim, eu recusava aceitar.
Ela partiu enquanto eu resolvia equações. Morreu enquanto calculava limites e derivadas. O último suspiro dela aconteceu no exato momento em que eu traçava um gráfico, inconsciente de que a vida mais importante da minha existência se extinguira a poucos quilómetros de distância.
Sete anos mais tarde, descobri Simone Weil, e foi como se alguém tivesse finalmente posto palavras nas feridas que nunca cicatrizaram. A filósofa francesa, que morrera jovem e atormentada pelas injustiças do mundo, falava de uma dor que eu reconheci intimamente — aquela que nasce da nossa incapacidade de estar presente nos momentos que mais importam.
Nas suas reflexões sobre o sofrimento como forma de purificação da alma, encontrei algo que me ajudou a compreender não só a minha culpa, mas também a própria natureza da perda. Weil escrevia sobre o infortúnio — a dor profunda e transformadora que o próprio Cristo sentiu na cruz — não como castigo, mas como redenção. Aquela dor suprema, vivida pelo Filho de Deus, não foi em vão; foi o preço da salvação, o caminho através do qual a humanidade encontra a possibilidade de redenção.
Durante anos, tinha interpretado a minha culpa como um castigo merecido, mas lendo Weil compreendi que talvez fosse também uma forma de transformação. O sofrimento que carregava desde aquela manhã terrível no jardim não era apenas autopunição — era também uma porta para uma compreensão mais profunda do amor e da fragilidade humana.
Curiosamente, numa daquelas ironias que só a Providência consegue orquestrar, sete anos exatos depois daquele dia fatal, a mesma data tornou-se num dos dias mais felizes da minha vida: o nascimento do filho da minha prima. A mesma mulher que chorara comigo na paragem do autocarro, que partilhara comigo a dor mais profunda, trazia agora ao mundo uma nova vida. Foi como se o Deus, na sua sabedoria misteriosa, tivesse decidido transformar um dia de morte num dia de vida.
Talvez a verdadeira tragédia não fosse apenas ter chegado tarde, mas ter demorado tanto tempo a compreender que até as nossas falhas mais dolorosas podem ser transformadas em graça.
Elson Medeiros
25 junho de 2025