Neste primeiro ano, após a sua morte

Neste primeiro dia da Primavera, perfaz um ano do falecimento do monsenhor José Soares Nunes que, durante 60 anos, foi professor do Seminário Episcopal de Angra.

Aos 84 anos, o padre José Nunes partiu para o Pai e neste primeiro ano, após a sua morte, apenas ficou a ausência de uma pessoa que, durante anos se dedicou inteiramente à Igreja, essencialmente, na formação e acompanhamento de jovens vocacionados ao sacerdócio.

A minha turma foi a primeira a não ter o privilégio de o ter como professor, visto que, no ano lectivo em que iniciamos a Teologia, ele deixou de leccionar. Contudo, tivemos a felicidade de alguns os momentos de convívio, de diálogo, de troca de olhares, que foram também outras formas de ele [nos] ensinar. E nisto, ele era e é exímio: chegava sem alarmes, presente sem dar das vistas, falar sem se sobrepor, ir embora quando achava que tinha que ir.

Neste primeiro ano, após a sua morte, ficou apenas a ausência de alguém que madrugava e, por vezes, ainda antes do sol se levantar, já a luz do seu quarto reflectia no parapeito exterior da sua janela, virada para o pátio das aulas, com uma vista privilegiada sobre as torres da Sé e o Monte Brasil.

Neste primeiro ano, após a sua morte, ficou a penas a ausência de alguém que tinha as horas dos dias programadas ao rigor alternadas, ora com a leitura e estudo no quarto ou assistindo, pela milésima vez, os episódios do Inspector Max, ora na capela a rezar. E na capela, a grande sala de aulas do Mestre, o padre José Nunes dedicava muito tempo: momentos da liturgia das horas, o terço, a via-sacra, leitura das homilias do Santo Padre, as orações das pagelas dos santinhos, a Eucaristia, o silêncio…

Neste primeiro ano, após a sua morte, ficou apenas a ausência de alguém que, às refeições, se sentava, mudamente, no canto da mesa. Comia peixe desenxabido, sem sal e sem cor, com duas batatas e metade de um papo-seco. Era a sua dieta, apresentada pelos serventes, numa terrina de inox. Os olhinhos arregalavam-se, como uma criança, quando aparecia uma sobremesa doce. Nunca recusava um bolo ou um pudim. Era guloso.

Neste primeiro ano, após a sua morte, apenas se sentiu a surdez do silêncio que ele fazia. Deixou de haver as nossas habituais idas às consultas médicas e os pensos no centro de saúde. Já não é preciso ir com o carrinho ao mecânico…

Neste primeiro ano, após a sua morte, recordaram-se alguns poucos episódios da sua vida. E não são tantos porque a discrição e a modéstia eram o seu estilo de vida. Pelo que conheci e pelo que me contaram, o padre José Nunes não gostava de dar nas vistas, nem nunca teve intenções de ordem maior, a não ser, ser amigo de Jesus.

Neste primeiro ano, após a sua morte, ficou a saudade da presença de alguém que pouco aparecia, que pouco falava, que nada sugeria e nada incomodava. Ficou a saudade de alguém que apenas marcava presença. Uma presença que todos respeitavam e tinham uma sublime consideração. E, parece-me, que ele pouco se importava com os louvores que lhe direccionavam.

Há um ano, no seu funeral com pouquíssima gente, atendendo à pessoa ilustre que foi o padre Dr. José Nunes, à espera do seu corpo para a missa das exéquias, aglomeram-se no adro da Sé os mendigos e os pobres da cidade, para agradecerem e se despedirem, pela última vez, aquele que, em muitas circunstâncias da fome do corpo e da alma, os alimentou com a generosidade que emanava do seu doce e bom coração.

O padre José Nunes ensinou à Igreja Diocesana como estar no mundo sem pertencer a este mundo: Servir e Rezar. Só isto lhe bastou para que todos o amassem… serviço e oração!

Neste primeiro ano, após a sua morte, apenas ficou a vida.

Angra, 20/03/20

Jorge P Sousa

 

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