O Evangelho é verdadeiramente poliédrico. E é fácil cair em simplismos superficiais. O mesmo Jesus que mandou um jovem vender tudo o que possuía (Mt 19, 21) foi o mesmo que elogiou a pecadora que ungiu os seus pés com o perfume caro (Mc 14, 3-7: “pobres sempre os tereis”); o mesmo Jesus que declarou puros os alimentos (Mt 15, 11) foi o mesmo que não veio abolir a lei (Mt 5, 17). Não é fácil captar o paradoxo do cristianismo (como chamava Chesterton). Mas, invariavelmente, o foco de Jesus não era o exterior, mas, sempre, a autêntica conversão do coração.
Jesus criticou os hipócritas que usavam longas vestes. Não criticou as vestes, mas sim o interior de quem as usava. Criticou a vaidade e a altivez. Se não lermos o Evangelho pela metade, veremos que, depois de falar das longas vestes, Jesus resolve o assunto dizendo: “Devíeis praticar estas coisas, sem deixar aquelas (Mt 23, 23)”. Afinal de contas, de que nos servirá usar uma alva simples e não ter um coração simples?
A certa altura, no século XX, a pompa litúrgica tornou-se vazia. Se o movimento litúrgico e o Concílio Vaticano II serviram para dizer “rendas e berloques não bastam, é preciso mudar de vida” – viva o movimento litúrgico! Se, pelo contrário, se trata de mudarmos as vestes e os ritos e continuarmos soberbos e juízes do próximo – é muito pouco. Isso até descredibiliza o Concílio e instaura as tais “confusões de internet” que D. Armando referia na homilia das ordenações do dia 23 de novembro em São José.
Um dia, Jesus contou a parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37) para mostrar que entre essa “raça que não presta” – os “samaritanos” – há gente boa. Tomara percebêssemos que entre a suposta “raça das rendas e berloques” há gente boa. Há cegueiras que nos impedem de ver para lá da superfície. Gente houve que preferiu lamentar tecido do que congratular o “sim” generoso de três jovens que foram ordenados sacerdotes. Perderam a referência do essencial. A mesma vacuidade da ostentação litúrgica pré-conciliar invadiu os arautos da simplicidade pós-conciliar. Não entenderam nada. Padecem do mesmo problema, mas com sinal oposto, e o problema é focarem-se na pastoral do pano e não na mudança interior.
Quanto às análises psicológicas do que se “esconde atrás das vestes”, têm subjacente uma mentalidade freudiana, cuja antropologia padece de um reducionismo e determinismo que a Igreja sempre e acertadamente denunciou. Padres imorais há-os de todas as cores, feitios e roupa. Corações soberbos também se podem mascarar de túnicas modestas.
Aos fiéis leigos que porventura tiverem o transtorno de ler isto, desculpem-me tratar de um assunto tão entediante, mas é que os padres ainda ligam a estas coisas.
Aos neo-sacerdotes, dou os meus parabéns, desejo a sua perseverança, e, de onde estiverem, peço que me concedam a sua bênção, para que eu me transforme um pouco mais à imagem daquele Cristo cujo coração era nobre e simples (Cf. SC 35), onde Ele oferecia ao Pai o verdadeiro culto em espírito e verdade (Jo 4, 23).
Afonso Silveira, seminarista