A música tem a sublime capacidade de nos fazer viver os mais variados sentimentos, transpondo-nos para diferentes realidades, vivências e trazendo-nos as mais diversas recordações. É esta a sua riqueza: os seus diversos estilos, ritmos e tons apresentam-nos um leque de estímulos aos nossos sentidos.
Assim também a música sacra, estando ao serviço da liturgia, pretende ser um meio pela qual se auxilia a assembleia celebrante a viver o Mistério que está a ser celebrado. Isso torna-se claro se analisarmos os diversos tempos litúrgicos e os estilos musicais que os acompanham, de forma a haver uma cumplicidade de estímulos proporcionados pela liturgia e pela música.
Ao aproximarmo-nos do Domingo de Pentecostes, permitam-me aqui apresentar uma obra musical que reflecte este mistério tão rico que a Igreja celebra que é a descida do Espírito Santo sobre Maria e os Apóstolos, acontecimento fundante da Igreja.
Erschallet, ihr Lieder (Cantai-lhe louvores), BWV 172, é uma cantata sacra da autoria de Johann Sebastian Bach, escrita para o Domingo de Pentecostes. A sua estreia deu-se a 20 de Março de 1714 na igreja do castelo de Weimar. O texto, à semelhança da maior parte das cantatas de Bach, é provavelmente do poeta Salomo Franck. A cantata é escrita para coro soprano, contralto, tenor e baixo, respectivos solistas, e uma orquestra festiva de três trombetas, tímpanos, cordas com primeiros e segundos violinos, primeiras e segundas violas, violoncelo e contrabaixo, oboé ou órgão.
De forma a manter o espírito festivo do dia, a cantata abre com um brilhante e jubiloso coro a quatro vozes e orquestra, em que o texto exorta: «Cantai-lhe louvores com harpa e trombeta. Ó tempo mavioso! Em templo divino transforma a alma». Segue-se um curto recitativo de baixo – o único na cantata – que nos leva para uma ária onde o baixo roga ao Espírito Santo que faça em nós morada «dentro do nosso coração». Este forte pedido é suportado pelo som das trombetas. É interessante observar que Bach utiliza um simbolismo trinitário ao escrever a parte vocal essencialmente com intervalos de terceira. Encontramos de seguida uma outra ária, desta vez, para tenor e num registo completamente diferente da anterior. Aqui, o toque meigo dos instrumentos de corda cria um clima de tranquilidade aludindo ao sopro do Espírito como «brisa balsâmica».
Na recta final da cantata, é apresentado um dueto, entre soprano e contralto, que toma a forma de um diálogo entre a alma impaciente e o Espírito Santo. O texto é um hino de Pentecostes Komm, Heiliger Geist, Herre Gott, de Martinho Lutero, uma versão modernizada do canto gregoriano Veni Creator Spiritus. A cantata conclui com uma estrofe do hino de Philip Nicolai, presente no hinário luterano:
Jesus, eu posso me alegrar
e sempre quero te chamar
meu Redentor gracioso.
Um dia hás de conduzir
ao paraiso no porvir,
à glória, ao céu ditoso.
Quanto anseio
ser levado
e abrigado
no teu seio,
onde nada mais receio.
Embora seja uma composição luterana, esta cantata e a sua riqueza textual mostra-nos a capacidade de encontro que a música nos pode proporcionar numa oração ecuménica, conjunta, onde se o louva o Senhor «com arte e com alma» e se roga para que o Espírito Santo seja derramado sobre nós e sobre o mundo e faça em nós morada.
Uma profícua audição!
Nelson Pereira