Metamorfose

Desde logo sentimos a necessidade – se quisermos falar em Português sobre uma transcendência mística na arte – de ir beber a Pessoa o essencial captado no instante, tomando-nos pelos Sentidos.
Assim, sentir-nos-emos «nascidos a cada momento/ Para a eterna novidade do Mundo…». Sentirmo-nos nascidos para algo que se insurge ao nosso ser, é saber falar de cor, de coração, com o coração.

A utilidade da arte advenha-lhe talvez da sua primária inutilidade cabal. A arte serve para tornar o mundo mais habitável, menos domesticado, mais livre nas suas formas e doutrinas, enquanto trampolim ao desenvolvimento do Homem. Na sua contemporaneidade raramente é-lhe atribuído o devido valor e cuidado. Gostamos da arte do tempo no Museu, mas raramente entendemos e achamos a arte da vida na sua quotidianidade.

Talvez o meu primeiro confronto racional (leia-se: nascimento para…) com algum tipo de arte tenha sido pelos finais de julho do ano 2000 com a “Transfiguração” de Rafael patente na Pinacoteca Vaticana.

Tanto na “Transfiguração” de Rafael, quanto na arte em geral ou na teologia, podemos ver a fuga e o encontro de cada Homem e de “cada Deus”. Podemos sempre contemplar e adentrar no movimento ascendente e descendente (podemos ter aqui presente a doutrina de Nouwen), numa comunhão – koinonia -, fecunda no amor – ágape -, que dita uma Katabasis e uma Anabasis, um Deus que desce à condição do Homem e um regresso do Homem ao seu Deus, que nos remente prematuramente para uma plena expressão térrea daquilo que de celestial fecundamos em toda a nossa esperança.

A arte é um lugar que tem de ser nosso. Se quisermos tender ao infinito, teremos que necessariamente habitar na arte que não é desencarnada. Não é à toa que Natália Correia afirma já em pleno século XX que, quando a beleza dum lugar nos retiver, é sinal que há um Deus que nos indica o caminho do espírito. A arte é, por isso, uma espécie de mapa, de GPS, de marco milenar à arte do viver e do encontro na abertura ao transcendente na sua dimensão infinita.

Detemo-nos agora na “Transfiguração”. Na narrativa pictórica da agitação na nova Babel, neste movimento de ascensão e descensão, de poisio, de moradia e de habitar uma casa comum. Na busca pela Sabedoria e pela aprendizagem dos ensinamentos do Mestre, patente na anotação no livro aberto daquele que segue e dá testemunho. Na antecipação do Pentecostes, uma emancipação de um Cosmos prenhe que se revira e revolta recriando-se. Na alteridade do desassossego de um teo-lugar. Na intensidade que a lazulite predominante traz ao presente ao ficarmos imersos no olhar, na nostalgia teo-relacional. Sugerindo-se mesmo enquanto instauração do Céu na Terra: o abismo e o profundo no suspenso. Liga-nos por instantes ao céu e ao mar que quase tocamos da porta da nossa casa, e à cúpula que Abraão tocou com a sua oração e com a sua espera. Não é por as figuras de Cristo e dos Profetas estarem acima do nível da mente e do coração que não constituem um horizonte alcançável; algo de intransponível, mesmo se por momentos pareçam figurar na sua distração, as testemunhas oculares da redenção ou as testemunhas de fé – não menos prediletas – que não são privilegiadas pelos Evangelistas.

É no rosto – quase escatológico – do Cristo que culmina toda a densidade do plano superior. Avulso e multidirecional, remete-nos para a totalidade expressiva do infinito que num instante parece querer afirmar como em Jo. 12, 32: «E Eu, quando for erguido da terra, atrairei todos a mim.», ou, se quisermos tomar a tradução de Frederico Lourenço: «E eu, quando for içado ao alto a partir da terra, todos puxarei para mim.»

É esta a plena metamorfose que procuramos, mesmo se nem sempre sabemos que a queremos.

Transfiguração Rafaello

 

 

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